quinta-feira, 30 de abril de 2009

UMA SEMANA COM NOAM CHOMSKY - PARA ONDE CAMINHA O MUNDO?


Para onde caminha o mundo?

O novo milênio começou com dois crimes monstruosos: os atentados terroristas de 11 de setembro e a resposta aos mesmos, que certamente fez um número muito maior de vítimas inocentes.


O novo milênio começou com dois crimes monstruosos: os atentados terroristas de 11 de setembro e a resposta aos mesmos, que certamente fez um número muito maior de vítimas inocentes. As atrocidades do dia 11 de setembro foram consideradas um acontecimento histórico, o que é correto. Mas deveríamos deixar claro por quê. Esses crimes representam talvez o mais devastador tributo humano instantâneo jamais pago, à exceção dos tempos de guerra. A palavra ''instantâneo'' não deveria passar despercebida; é triste, mas certo, que os crimes não são em absoluto raros nos anais de uma violência muito parecida com aquela das guerras. As conseqüências são uma de suas inumeráveis ilustrações. A razão pela qual o ''mundo nunca mais será igual'' depois de 11 de setembro, usando a expressão agora tão em moda, é outra.


A dimensão da catástrofe ocorrida no Afeganistão, e daquela que pode vir em seguida, só se pode supor. Mas conhecemos as projeções nas quais se baseiam as decisões políticas e, a partir delas, podemos entender um pouco a pergunta sobre a direção para onde caminha o mundo. A resposta é que avança por caminhos já muito trilhados. Mesmo antes do dia 11 de setembro, milhões de afegãos sobreviviam - quase - graças à ajuda humanitária internacional. No dia 16 de setembro, o jornal americano The New York Times informou que Washington havia ''exigido a eliminação dos comboios que forneciam boa parte dos alimentos e outros bens à população civil afegã''. Não se detectou nenhuma reação nos Estados Unidos ou na Europa à exigência de que uma enorme quantidade de desabrigados fosse submetida à fome e a uma morte lenta. Nas semanas seguintes, o principal jornal do mundo informou que as ''ameaças de ataques militares obrigaram os funcionários de organizações humanitárias a abandonar o país e interromper os programas de ajuda''. Os refugiados que chegavam ao Paquistão, ''depois de uma longa viagem desde o Afeganistão, descreviam cenas de desespero e medo em seu país, enquanto as ameaças dos ataques militares dirigidos pelos Estados Unidos convertem a miséria que padecem há tempos em uma potencial catástrofe''. ''O país dependia de uma corda de salvação'', disse um voluntário, ''e acabamos de cortá-la''.


O Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas, assim como outras instituições, conseguiu fazer alguns envios de alimentos no início de outubro mas, depois dos bombardeios, se viram obrigados a suspendê-los, para retomá-los mais tarde em um ritmo muito mais lento, enquanto os organismos de ajuda condenavam ''sem paliativos'' os lançamentos aéreos de ajuda norte-americana - ''ferramentas de propaganda'' mal dissimuladas. O New York Times afirmou, sem comentários, que a previsão era que o número de afegãos que precisariam de ajuda humanitária aumentaria em 50% por causa dos bombardeios, até chegar a 7,5 milhões de pessoas. Em outras palavras, a civilização ocidental baseia seus planos na suposição de que pode provocar a morte de milhões de civis inocentes: não talibãs, mas suas vítimas. No mesmo dia, o líder da civilização ocidental voltou a recusar com desdém as ofertas de negociação feitas pelos talibãs e o pedido para que lhes dessem provas concretas que sustentassem a exigência de rendição. Sua postura foi considerada justa e adequada, talvez até heróica. O relator especial da ONU para o Direito à Alimentação pediu aos Estados Unidos que pusessem fim aos bombardeios, que ''colocavam em risco a vida de milhões de civis'' e renovou o a advertência da Alta Comissária para os Direitos Humanos, Mary Robinson, de que se estava provocando uma catástrofe semelhante à de Ruanda. Ambos os pedidos foram recusados, como os das principais entidades de ajuda humanitária. E praticamente não receberam cobertura pela imprensa.

A FAO (Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas) advertiu no final de setembro que mais de sete milhões de pessoas poderiam morrer de fome se o envio de alimentos não fosse imediatamente retomado e as ameaças de ataques militares não fossem interrompidas. Uma vez iniciados os bombardeios, a FAO avisou que se produziria uma catástrofe humana mais grave, que o bombardeio havia interrompido a agricultura, responsável por 80% dos grãos no país, e que os efeitos no próximo ano seriam ainda mais sérios. Tampouco se publicou a notícia. Essas declarações não publicadas coincidiram com o Dia Mundial da Alimentação, que também foi ignorado, e com a acusação do relator especial da ONU de que os ricos e poderosos têm os meios, mas não a vontade, de superar esse ''genocídio silencioso''.


Os bombardeios aéreos transformaram as cidades em ''cidades fantasmas'', informava a imprensa, e destruíram as fontes de energia elétrica e água, uma forma de guerra biológica. Foi divulgado que 70% da população tinha fugido de Kandahar e Herat, a maioria para o campo onde, em tempos normais, entre 10 e 12 pessoas ficam inválidas por dia por causa das minas. Essas condições são agora muito piores. As operações da ONU para desativar minas foram interrompidas e as bombas norte-americanas que não explodiram se somam a essa tortura, especialmente os explosivos de fragmentação, muito mais difíceis de serem eliminados.

Se nos basearmos nos precedentes, sabemos que nunca se conhecerá, nem se investigará, o destino destes infelizes. Isso é o que se reserva para as conseqüências dos crimes imputados a inimigos oficiais. Em tais casos, a investigação leva adequadamente em consideração não só os que morreram imediatamente, mas o número infinitamente maior de vítimas das políticas que se condenam. Quando se investiga, os critérios para os nossos crimes são completamente diferentes. Os efeitos de atos criminais não são levados em conta. O que quer que aconteça no Afeganistão, se um dia o episódio for investigado, a culpa recairá sobre qualquer coisa - a seca, os talibãs -, menos os que consciente e deliberadamente perpetraram crimes que sabiam que causariam a matança maciça de inocentes.


Apenas quem desconhece a história contemporânea pode se surpreender com isso. No final das contas, as vítimas não são mais que ''tribos selvagens'', como disse com desdém Winston Churchill sobre os afegãos e curdos quando pretendia, há 80 anos, usar gás venenoso para inspirar-lhes um ''terror vivo ''. E neste caso tampouco saberemos muito sobre as conseqüências. Há dez anos, a Grã-Bretanha teve a iniciativa de instaurar um ''governo aberto''. Seu primeiro ato foi eliminar dos arquivos públicos todos os informes sobre o uso de gás tóxico contra as tribos selvagens. Se é para ''exterminar a população indígena'', que assim seja, declarou o ministro da Guerra francês ao anunciar, em meados do século 19, o que se estava fazendo, e não pela última vez, na Argélia. É fácil. O que acontece agora no Afeganistão é clássico, faz parte da história contemporânea. É normal que provoque pouco interesse ou preocupação, e inclusive que não seja notícia.

Os crimes do dia 11 de setembro são, de fato, um ponto de inflexão histórica, e não por sua magnitude, mas por seu objetivo. É a primeira vez, desde que os britânicos queimaram Washington em 1814, que os Estados Unidos foram atacados, ou até ameaçados, em território nacional. Não deveria ser necessário revisar o que aconteceu aos que cruzaram seu caminho ou desobedeceram a eles nos séculos transcorridos desde então. O número de vítimas é enorme. Pela primeira vez, as armas apontaram no sentido contrário. É uma mudança histórica.


O mesmo se pode dizer, de maneira mais dramática, da Europa, que sofreu destruição assassina, mas por guerras internas. Enquanto isso, as potências européias conquistavam boa parte do mundo de maneira não muito cortês. Com raras e limitadas exceções, não foram atacadas por suas vítimas estrangeiras. O Congo não atacou nem devastou a Bélgica, nem as Índias Orientais a Holanda, nem a Argélia atacou a França. A lista é grande, os crimes, horrendos. Não surpreende, então, que a Europa se horrorizasse diante das atrocidades terroristas do dia 11 de setembro. Mas, embora os atentados terroristas signifiquem uma mudança drástica nas questões mundiais, a resposta a eles não representa transformação alguma. Os líderes norte-americanos e de outros países sinalizaram corretamente que enfrentar o monstro terrorista não era uma tarefa de curto prazo, mas de larga duração. Portanto, deveríamos considerar atentamente as medidas a tomar para diminuir o que se denominou, em altas instâncias, ''o maligno açoite do terrorismo'', uma praga estendida por ''depravados que se opõem à civilização'' em ''uma volta à barbárie em plena idade contemporânea''. Deveríamos começar identificando a praga e os elementos depravados que estão fazendo com que o mundo volte à barbárie.


A acusação não é nova. As frases que acabo de citar são do presidente Ronald Reagan e seu secretário de Estado, George Shultz. O governo de Reagan chegou ao poder há 20 anos e proclamou que a luta contra o terrorismo internacional seria o elemento central da política exterior norte-americana. Responderam à praga organizando campanhas internacionais contra o terrorismo em escala e violência sem precedentes, que provocaram inclusive que o Tribunal Internacional de Justiça condenasse os Estados Unidos por ''uso indevido da força'' e que o Conselho de Segurança da ONU adotasse uma resolução na qual pedia a todos os países para observar o direito internacional. A resolução foi vetada pelos Estados Unidos, que votou da mesma maneira, juntamente com Israel, em outras resoluções semelhantes das Nações Unidas. A ordem emitida pelo Tribunal Superior de Justiça de que se pusesse fim ao terrorismo internacional e que se pagasse indenizações significativas foi rechaçada com desdém em todo o espectro de opinião; os votos da ONU praticamente não receberam cobertura pela imprensa. Washington reagiu multiplicando as guerras econômicas e terroristas. Também deu ordens oficiais às tropas mercenárias para que atacassem ''alvos fáceis'' - alvos civis indefesos - e evitassem o combate, algo que podiam fazer porque os Estados Unidos controlavam o espaço aéreo e proporcionavam um complexo equipamento de comunicação ao Exército terrorista que atacava desde os países vizinhos.


Essas ordens eram consideradas legítimas, desde que cumprissem critérios pragmáticos. Um importante analista, Michael Kinsley, considerado o porta-voz da esquerda no debate geral, sustentou que não bastava rechaçar as justificativas do Departamento de Estado sobre os ataques terroristas a ''alvos fáceis''. ''Uma política sensata deve suportar a prova da análise de custo-benefício'', escreveu. Uma análise da ''quantidade de sangue e miséria que se vai produzir com as possibilidades de que ali emerja a democracia'' (''democracia'' tal como entendem as elites ocidentais, uma interpretação que os países da região ilustram muito bem).


Se dá como certo que se tem direito de fazer a análise e empreender o projeto, caso aprovados. E foram. Quando a Nicarágua finalmente caiu diante do assalto da superpotência, os especialistas de todo um espectro de opinião respeitável aplaudiram o sucesso dos métodos adotados para ''afundar a economia e levar a cabo uma guerra através de intermediários, até que os nativos exaustos deponham o governo que se deseja derrubar'', com um custo ''mínimo'' para nós, para deixar as vítimas ''com pontes destruídas, centrais elétricas sabotadas e explorações agrícolas arruinadas'', proporcionando assim ao candidato norte-americano ''uma possibilidade de ganhar'': pondo fim ao ''empobrecimento do povo nicaragüense'' (revista Time). Estamos ''unidos no júbilo'' por este resultado, proclamou o The New York Times, orgulhoso da ''vitória de jogo limpo norte-americano'', segundo uma manchete do jornal.


O mundo civilizado voltou a se sentir ''unido no júbilo'' há algumas semanas quando o candidato dos Estados Unidos ganhou as eleições na Nicarágua depois que Washington advertiu o país seriamente sobre o que aconteceria caso ele não ganhasse. O jornal Washington Post explicou que o vencedor ''havia baseado sua campanha em lembrar ao eleitorado as dificuldades econômicas e militares da era sandinista'', quer dizer, a guerra terrorista e o estrangulamento econômico fomentados pelos Estados Unidos e que devastaram o país. Entretanto, o presidente nos instruiu sobre a única ''lei universal'': todas as variedades de terror e assassinato ''são malignas'' (a não ser, é claro, que nós sejamos os causadores).

As atitudes que prevalecem no Ocidente em relação ao terrorismo se revelam com grande clareza na reação provocada pela nomeação de John Negroponte como embaixador junto à ONU para dirigir a ''guerra contra o terrorismo''. O currículo de Negroponte inclui seu serviço como ''pró-cônsul'' em Honduras nos anos 80, onde foi supervisor local da campanha terrorista internacional pela qual o Tribunal Internacional de Justiça e o Conselho de Segurança condenaram o governo. Não se detecta nenhuma reação. Até Jonathan Swift ficaria sem fala.

Menciono o caso da Nicarágua apenas porque não é polêmico, segundo as sentenças emitidas pelos mais altos organismos internacionais. Quer dizer, não é polêmico entre aqueles que estão minimamente comprometidos com os direitos humanos e as leis internacionais. Podemos calcular o tamanho de tal categoria determinando com que freqüência sequer se mencionam estas questões elementares. E a partir deste simples exercício pode-se tirar sombrias conclusões sobre o futuro que se aproxima se os centros de poder de ideologia existentes se sobressaírem.

O caso nicaragüense está muito distante de ser o mais extremo. Apenas na era Reagan, terroristas de Estado patrocinados pelos Estados Unidos deixaram na América Central centenas de milhares de cadáveres torturados e mutilados, milhões de inválidos e órfãos e quatro países em ruínas. Nos mesmos anos, as depredações sul-africanas respaldadas pelo Ocidente causaram um milhão e meio de mortos e danos no valor de US$ 60 bilhões. Sem falar do Oeste e Sudeste asiático, da América do Sul e de tantos outros lugares. E não foi uma década especial.


É um grave erro analítico descrever o terrorismo como ''uma arma dos débeis' ', como se costuma fazer. Na prática, o terrorismo é a violência que Eles cometem contra Nós, independentemente de quem seja esse Nós. Seria difícil encontrar uma exceção histórica. E, já que os poderosos determinam o que é história e o que não o é, o que passa o filtro é o terrorismo dos débeis contra os fortes e seus clientes.


* Noam Chomsky é professor de lingüística no MIT (Massachusetts Institute of Technology).


quarta-feira, 29 de abril de 2009

UMA SEMANA COM NOAN CHOMSKY - E SE O "BANDIDO" FOSSEM OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA?


E SE O "BANDIDO" FOSSEM OS EUA

Ao aplicar o conceito de "estados bandidos" aos adversários, Washington reivindicava o direito de tomar medidas unilaterais.

Noam Chomsky


O conceito de "Estado-bandido"(1) ou Estado fora-da-lei teve, nos últimos tempos, um papel primordial na análise e na estratégia política norte-americana. O exemplo mais conhecido(2) é a crise iraquiana, que dura exatamente há 10 anos (a invasão do Kuait pelo Iraque data de 1° de agosto de 1990). Na época, Washington e Londres decretaram ser o Iraque um "Estado-bandido", que constituía uma ameaça aos seus vizinhos e aos demais países; uma "nação fora-da-lei", dirigida por uma reencarnação de Hitler, e que devia ser mantida em xeque pelos guardiães da ordem internacional: os Estados Unidos e seu fiel escudeiro britânico.


A característica mais interessante deste debate sobre os "Estados-bandidos" é precisamente nunca ter ele acontecido. As discussões ficam circunscritas a limites que impedem a formulação de uma resposta evidente: que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha devem agir de acordo com suas leis e com os tratados internacionais que assinaram.


Enquadramento legal


O enquadramento legal pertinente ao caso ê baseado na Carta das Nações Unidas, fundamento do direito internacional, e, para os Estados Unidos, na Constituição norte-americana. A Carta estipula que "uma vez constatada a existência de uma ameaça contra a paz, de uma ruptura da paz ou de um ato de agressão, o Conselho de Segurança pode decidir as medidas a serem tomadas que não impliquem o uso da força armada. Caso tais medidas se revelem inadequadas, o Conselho poderá empreender qualquer ação que julgue necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais". A única exceção admitida está no Artigo 51: "Nenhuma disposição da presente Carta causa prejuízo ao direito natural de legítima defesa, individual ou coletiva, caso um país membro das Nações Unidas seja objeto de uma agressão armada, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para, manter a paz e a segurança internacionais."


Agindo por conta própria


Existem, portanto, vias legítimas de recurso para fazer frente às diversas ameaças que pesam contra a paz mundial, e nenhum Estado tem autoridade para agir por sua própria conta, através de medidas unilaterais. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha não são exceções à regra, mesmo que tivessem as mãos limpas, o que está longe de ser o caso. Os "Estados-bandidos" não aceitam tais condições: como o Iraque de Saddam Hussein, por exemplo, ou os Estados Unidos. Dessa forma, por ocasião do primeiro confronto com o Iraque, a atual secretária de Estado Madeleine Albright, que na época era embaixadora dos Estados Unidos junto à Organização das Nações Unidas (ONU), declarou sem constrangimento ao Conselho de Segurança: "Agiremos de forma multilateral, quando pudermos, e unilateralmente, quando julgarmos necessário", pois "consideramos a área do Oriente Médio de vital importância para os interesses nacionais dos Estados Unidos."


ONU avalizou acordo de paz
Essa posição foi reiterada pela secretária de Estado em fevereiro de 1998, quando o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, se encontrava numa missão diplomática em Bagdá: "Nós lhe desejamos boa sorte, e quando ele voltar veremos se o que ele traz é compatível com nossos interesses nacionais." Quando Annan anunciou que fora alcançado um acordo com Sadam Hussein, o presidente Bill Clinton declarou, por sua vez, que se o Iraque não se conformasse - sendo Washington o único juiz da questão -, "todo o mundo compreenderia que os Estados Unidos e, assim espero, todos os nossos aliados, teríamos o direito unilateral de responder no momento, no lugar e da maneira da nossa escolha".


O Conselho de Segurança da ONU endossou por unanimidade o acordo assinado por Annan, rejeitando a exigência de Londres e Washington de serem autorizados a utilizar a força, caso o acordo não fosse cumprido. Nessa hipótese, a resolução do Conselho indicava que o Iraque se exporia "às mais graves conseqüências", sem maior precisão. O Conselho decidiu ainda permanecer no controle da situação. Nos termos da Carta das Nações Unidas, tratava-se exclusiva e tão-somente do Conselho de Segurança(3).

Senhores da guerra


Washington fez uma leitura completamente diferente desse texto, que no entanto nada tem de ambíguo. Segundo 0 embaixador William Richardson, o acordo alcançado "não impedia o uso unilateral da força" e os Estados Unidos conservavam o direito legal de atacar Bagdá quando bem entendessem. Clinton, por sua vez, declarou que a resolução do Conselho de Segurança lhe "conferia autoridade para agir" - por meios militares, precisou seu assessor de imprensa - em caso de desrespeito por parte do Iraque dos compromissos assumidos. No Congresso, certos eleitos consideraram que esta posição oficial ainda era por demais respeitosa do direito nacional e internacional. O republicano Trent Lott, por exemplo, líder da maioria no Senado, denunciou o governo de Clinton por ter "subcontratado" sua política externa "a outros" - quer dizer, ao Conselho de Segurança. Seu colega John Kerry, outrora "pomba da paz", acrescentou que a invasão do Iraque pelos Estados Unidos seria "legítima", caso Saddam Hussein "se obstinasse em violar as resoluções da ONU".


Desprezo pelo direito internacional


O desprezo pela primazia do direito está profundamente enraizado na cultura intelectual e nas práticas norte-americanas. Basta recordar, entre outros exemplos, a reação de Washington à sua condenação pela Corte Internacional de Justiça de Haia, em 1986. Os Estados Unidos foram então condenados por "uso ilegal da força" contra a Nicarágua sandinista, intimados a pôr fim às suas atividades clandestinas a serviço dos "Contra" anti-sandinistas, e ainda a pagar indenizações ao governo legal de Manágua(4). Essa decisão da mais alta instância judiciária internacional provocou um furacão de protestos nos Estados Unidos. A Corte foi acusada de ter se "desacreditado", e seu parecer, julgado indigno de ser publicado, não foi absolutamente levado em conta. Muito pelo contrário: a maioria democrata no Congresso imediatamente autorizou a liberação de novos fundos para os terroristas do "Contra". Numa declaração de abril de 1986, o secretário de Estado George Schultz havia formulado de maneira clara a doutrina norteamericana sobre a questão: "A palavra negociação é um eufemismo para capitulação, se a sobra do poder não se projeta sobre o campo de diálogo", explicou, condenando os que defendiam "meios utópicos, legalistas, tais como a mediação por terceiros, a ONU e a Corte de Haia, sem considerar na equação o elemento poder."


A "agressão interna"
O desprezo escancarado pelo artigo 51 da Carta das Nações Unidas é particularmente revelador. Tivemos um exemplo muito claro depois dos acordos de 1954 que puseram fim à primeira guerra da Indochina, conduzida pela França. Foram considerados um "desastre" por Washington, que logo se dedicou a sabotá-los: o Conselho Nacional de Segurança decidiu secretamente que "em caso de rebelião ou de subversão comunistas locais que não constituíssem ataque armado", os Estados Unidos considerariam o uso da força, inclusive contra a China, identificada como "a fonte da subversão". O mesmo documento preconizava a remilitarização do Japão e a transformação da Tailândia no "ponto focal das operações clandestinas e de guerra psicológica no Sudeste asiático"(5), especialmente na Indochina, ou seja, Vietnã(6). Posteriormente, o governo norte-americano iria dar a sua definição do conceito de agressão, incluindo o "combate político ou a subversão" - entenda-se: por parte de outros países, que não eles próprios. E o artificio utilizado pelo senador democrata Adlai Stevenson, que invocou uma "agressão interna" para justificar a escalada militar do presidente John Kennedy que iria levar a um ataque de grande envergadura no Sul da península e, conseqüentemente, à longa guerra do Vietnã. Para justificar diante do Conselho de Segurança a invasão do Panamá por tropas norte-americanas em dezembro de 1989, o embaixador Thomas Pickering invocou o artigo 51 da ONU: tratava-se, segundo ele, de impedir que o território desse país "fosse utilizado como base para. o tráfico de drogas destinadas aos Estados Unidos". Entre a "opinião esclarecida" ninguém contradisse essa interpretação.


O direito à "legítima defesa"


Em junho de 1993, o presidente Clinton alcançou grande sucesso no Congresso e na imprensa quando ordenou um ataque de mísseis contra o Iraque, ataque que deixou grande número de vítimas civis. Os comentadores ficaram particularmente impressionados com o recurso de Albright ao famoso artigo 51: os bombardeios constituíam "um ato de legítima defesa contra um ataque armado", disse ela, referindo-se a uma pretensa tentativa de assassinato contra o presidente George Bush, ocorrida dois meses antes! Responsáveis pela administração, expressando-se em anonimato, informaram os jornalistas que "esse julgamento sobre a culpabilidade do Iraque baseava-se em provas e análises circunstanciais, e não em informações concretas" - o que não impediu que a imprensa saudasse com unanimidade a utilização do famoso artigo 51. Na Câmara dos Comuns, na Grã-Bretanha, o secretário de Relações Exteriores, Douglas Hurd, também defendeu esse "exercício justificado e comedido do direito à legítima defesa". Um tal balanço parece dar razão a todos os que, mundo afora, se preocupam com a existência de "Estados-bandidos", prontos a usar a força em nome de um "interesse nacional" definido somente pelos jogos de poder internos; e com a existência ainda mais inquietante de "Estados-bandidos" que se erigem em árbitros e carrascos em escala planetária.


Um "Gulag norte-americano"


O que viria, então, a ser um "Estado-bandido"? A idéia subjacente a essa formulação é que, embora terminada a guerra fria (1947-1989), os Estados Unidos conservam a responsabilidade de proteger o mundo. Mas proteger de quem? A "conspiração monolítica e impiedosa" de J. R Kennedy e o "império do mal" tão caro a Ronald Reagan já se acabaram. E preciso encontrar novos inimigos(7). Dentro do país, o medo da criminalidade - e em particular da droga - foi estimulado por "uma, série de fatores que pouco ou quase nada têm a ver com o crime propriamente dito". Essa é a conclusão da Comissão Nacional de Justiça Criminal, que cita o comportamento dos meios de comunicação, além do "modo como o Estado e a indústria privada produzem medo nos cidadãos", "explorando, com fins políticos, as tensões raciais latentes." E ressalta o preconceito racial existente na polícia e na justiça, que arrasa comunidades negras e cria um "abismo racial", colocando o país sob "O risco de uma catástrofe social". Criminologistas descrevem o resultado como um "Gulag norte-americano", um "novo apartheid", com a população carcerária atingindo, pela primeira vez na história dos Estados Unidos, cerca de dois milhões de detentos, em sua maioria (!) sendo afro-americanos. O índice de presidiários negros é sete vezes maior que o de brancos, sem qualquer relação com o índice de detenções, que por sua vez não tem relação alguma com os números reais de uso ou de tráfico de drogas(8).


Teoria do louco


No exterior, os perigos seriam o "terrorismo internacional", os "narcotraficantes hispânicos" e, o mais grave de todos, os "Estados-bandidos". Um estudo secreto, datado de 1995, e tornado público recentemente graças à lei sobre liberdade de informação, delineava em linhas gerais a abordagem estratégica na aurora do novo milênio. Feito pelo Strategic Command, responsável pelo arsenal nuclear estratégico, e intitulado Essentials of Post Cold War Deterrence (Princípios básicos de dissuasão no pós-guerra fria), o estudo mostra, segundo a agência Associated Press, "como os Estados Unidos modificaram sua estratégia de dissuasão, substituindo a União Soviética pelos Estados ditos ‘bandidos’ ou ‘fora-da-lei’: Iraque, Irã, Líbia, Síria, Cuba e Coréia do Norte".

Recomenda ainda que os Estados Unidos explorem seu potencial nuclear para projetar de si uma imagem "irracional" e "vingativa" no caso de ameaça aos seus interesses nacionais. "É prejudicial nos mostrarmos como pessoas razoáveis, racionais e de sangue-frio" e, pior ainda, como respeitadores de bobagens tais como o direito e os tratados internacionais. "Que alguns elementos" do governo federal "possam parecer potencialmente loucos, incontroláveis, pode contribuir para criar ou reforçar medos e apreensões nas mentes dos nossos adversários." Esse relatório ressuscitava a "teoria do louco" de Richard Nixon: os inimigos dos Estados Unidos devem compreender que estão diante de desequilibrados, de comportamento imprevisível, e que dispõem de uma enorme capacidade de destruição. O medo os conduziria, dessa forma, a se dobrarem às vontades norte-americanas. Esse conceito havia sido desenvolvido em Israel nos anos 50 pelo governo trabalhista, cujos dirigentes "pregavam atos de loucura", como escreveu em seu diário pessoal o ex-primeiro ministro Moshe Sharett. O conceito dirigia-se então, até certo ponto, contra os Estados Unidos, que na época não eram considerados suficientemente confiáveis. Retomada pela única superpotência atual, que se considera acima da lei e sofre poucos constrangimentos por parte de suas próprias elites, temos de admitir que essa teoria coloca um sério problema ao resto do mundo.


Criando novos inimigos


Desde o começo do governo Reagan, em 1980, a Líbia foi designada como 0 "Estado-bandido" por excelência. Vulnerável e sem meios de se defender, esse país é de fato um saco de pancadas per feito. Em 1986, por exemplo, o bombardeio de Trípoli terá sido o primeiro da história programado para transmissão por televisão, ao vivo e em tempo real, para que os escreventes dos discursos do "Grande Comunicador" Reagan pudessem mobilizar a opinião da multidão em favor dos ataques terroristas de Washington contra a Nicarágua. O pretexto? O "superterrorista" Khadafi tinha "enviado 400 milhões de dólares e todo um arsenal para Manágua, com o objetivo de levar a guerra para dentro dos Estados Unidos", que exerciam seu direito de legítima defesa contra a agressão armada desse "Estado-bandido" que era a Nicarágua sandinista. Imediatamente após a queda do muro de Berlim, em 1989, que pôs fim à ameaça soviética, o governo de George Bush submeteu ao Congresso seu pedido anual de um gigantesco orçamento para o Pentágono: "Nessa nova era que se anuncia (...) o emprego de nossas forças provavelmente não envolverá mais a União Soviética, e sim, talvez, o Terceiro Mundo, onde será certamente necessária uma nova conduta e novos procedimentos." Acrescentou que os Estados Unidos deveriam manter forças consideráveis de intervenção, especialmente destinadas ao Oriente Médio, onde "as ameaças contra os nossos interesses", que exigem intervenções militares diretas, "não podem ser debitadas ao Kremlin". Ao contrário, diga-se de passagem, de uma ladainha sem fim de inverdades difundidas durante 40 anos pela propaganda norte-americana, hoje em dia mortas e enterradas.


Onda de ira contra os EUA


Na época, as ameaças contra os interesses norte-americanos também não podiam mais ser debitadas ao Iraque, uma vez que Saddam Hussein - que fazia então a guerra contra, o Irã do aiatolá Khomeini - era um amigo cortejado e parceiro comercial de Washington. Seu estatuto, porém, mudaria completamente poucos meses depois quando, em julho de 1990, interpretou mal o consentimento norte-americano para mudar à força suas fronteiras com o Kuait, entendendo-o como uma autorização para invadir todo o país(9). Ou, na perspectiva do governo Bush, para repetir o que os Estados Unidos acabavam de fazer no Panamá, em dezembro de 1989. Os paralelos históricos no entanto, nunca são exatos. Quando Washington se retirou parcialmente do Panamá, após ter instalado ali um governo-fantoche, uma onda de ira rebentou em todo o hemisfério, inclusive no Panamá. Uma onda de ira que chegou mesmo a fazer a volta ao mundo, obrigando Washington a apor seu veto a duas resoluções do Conselho de Segurança da ONU e a se pronunciar contra uma resolução da Assembléia Geral que condenava "a violação flagrante do direito internacional e da independência, da soberania e da integridade territorial dos Estados" exigindo a retirada "do corpo expedicionário norteamericano" do Panamá.


Uma terapia de choque


O que alimenta a reflexão de analistas políticos, como por exemplo Ronald Steel, que se questionava sobre o "enigma" com que se deparavam os Estados Unidos: "Como nação mais poderosa do mundo, vêem a sua liberdade de empregar a força submetida a mais constrangimentos do que qualquer outro país." Daí o êxito (temporário) de Saddam Hussein no Kuait, em agosto de 1990, em comparação com a incapacidade de Washington de impor sua vontade no Panamá. Antes do Iraque, Irã e Líbia lideravam a lista dos "Estados-bandidos". Outros, no entanto, jamais figuraram nela. A Indonésia é um bom exemplo: transformou-se de inimigo em amigo quando o general Suharto tomou o poder em 1965, ,após um banho de sangue muito aplaudido no Ocidente(10). Suharto iria rapidamente tornar-se "o nosso tipo de cara" (our kind of guy) por retomar uma fórmula do governo Clinton, enquanto cometia agressões mortais e atrocidades sem conta contra seu próprio povo. Somente nos anos 80, contam-se 10 mil indonésios mortos pelas forças da ordem, segundo o testemunho pessoal do ditador, que explica também que "deixamos os cadáveres espalhados, como uma espécie de terapia de choque."(11)

"Bandidos" bonzinhos


Mas ainda em dezembro de 1975 o Conselho de Segurança da ONU havia intimado a Indonésia a retirar "com urgência" suas tropas, que haviam invadido o Timor Leste, antiga colônia portuguesa, e pedido que "todos os Estados respeitassem a integridade do Timor-Leste, bem como o direito inalienável de seus habitantes à autodeterminação". Os Estados Unidos iriam responder a essa decisão das Nações Unidas aumentando secretamente as remessas de armas aos agressores. O então embaixador da ONU, Daniel Patrick Moynihan, se diz orgulhoso, em suas memórias, por ter tornado as Nações Unidas "totalmente ineficazes, em quaisquer que fossem as medidas que tomassem" no que se referia à Indonésia. E isso, seguindo as instruções do Departamento de Estado, "que desejava que as coisas evoluíssem como evoluíram e trabalhou para tal". Washington também aceitaria tranqüilamente o roubo do petróleo do Timor (com a participação de uma companhia norte-americana), apesar da transgressão da legalidade que isso representava e em detrimento de qualquer interpretação razoável dos acordos internacionais. A analogia entre as situações do Timor-Leste e do Kuait é bastante próxima, mas há algumas diferenças. Para falar apenas da mais evidente: as atrocidades cometidas - com a bênção norte-americana - pelo regime indonésio na ilha do Timor, ultrapassam em muito qualquer coisa atribuída ao Iraque no seu vizinho(12). Isso, porém, não fez da Indonésia, na lista de premiados estabelecida por Washington, um "Estado-bandido"


"Bandidos" desobedientes


Não foram os crimes cometidos por Saddam Hussein contra seu próprio povo, nem sobretudo a utilização - perfeitamente conhecida pelos serviços secretos norte-americanos - de armas químicas contra civis, que metamorfosearam o ditador em "monstro de Bagdá". Antes da invasão do Kuait, os Estados Unidos haviam lhe dado um apoio tão certo que até deixaram passar o ataque da força aérea iraquiana contra o navio de guerra USS Stark (que fez 37 vítimas entre os marinheiros norte-americanos), um privilégio restrito até então a Israel (no caso de seu ataque "por engano" ao USS Liberty, em junho de 1967, que deixou 34 mortos). Eles haviam coordenado com Saddam Hussein a campanha diplomática, militar e econômica que levou, em 1989, à capitulação do Irã "diante de Bagdá e Washington", como escreveu o historiador Dilip Hiro.

Tinham até encomendado a Saddam Hussein os serviços habituais de Estado vassalo: por exemplo, treinar centenas de mercenários líbios recrutados por norteamericanos para derrubar o coronel Khadafi, como revelou Howard Teicher, um ex-assessor de Reagan(l3). Se Saddam Hussein caiu para o lado dos "Estados-bandidos", foi porque saiu da linha e se mostrou desobediente, do mesmo modo que o criminoso de menor envergadura Manuel Noriega, do Panamá, cujos principais crimes foram cometidos enquanto estava a serviço - remunerado - de Washington. Cuba foi classificada na categoria por sua presumida implicação no "terrorismo internacional", mas não os Estados Unidos, que, no entanto, durante quase 40 anos, fizeram múltiplos ataques terroristas à ilha caribenha e diversas tentativas de assassinar Fidel Castro. O Sudão foi também classificado como "Estado-bandido", embora não os Estados Unidos, que em agosto de 1998 bombardearam ali uma suposta fábrica de armas químicas, que depois foi provado tratar se de uma indústria farmacêutica, como afirmavam as autoridades de Cartum...(l4) Vê-se que o conceito de "Estado-bandido", hoje em dia oficialmente abandonado, foi particularmente flexível.
Enfim, os critérios eram perfeitamente claros: um "Estado-bandido" não era simplesmente um Estado criminoso, mas um Estado que não se dobrasse as ordens dos poderosos, eles mesmos, evidentemente, poupados desta classificação difamatória.


1)A expressão "Estado-bandido" (rougue state, em inglês)perdeu sua razão de ser – declarou o porta-voz do Departamento de Estado, Richard Boucher, - porque muitos desses países corrigiram suas condutas. Foi substituída por "Estado fonte de Preocupação" (state of concern, em inglês. Esta modificação de terminologia, no entanto, não afeta as sanções contra os referidos Estados. Cf. Le Monde, 21 junho de 2000.


(2)Ler, de Alain Gresh, "Muette agonie em Irak", Le Monde Diplomatique, julho de 1999.


(3)Ler, de Eric Rouleau, "Scenário contrarié dans le Golfe", Le Monde Diplomatique, março de 1998.


(4)Sobre a atitude dos Estados Unidos frente aos sandinistas que estavam então no poder em Manágua, ler, de Ignacio Ramonet, "La longue guerre occulte contre le Nicaragua", Le Monde Diplomatique, fevereiro de 1987.


(5)National Security Council 5429/2, Washington.


(6)Note-se que Robert Macnamara, secretário da Defesa de 1961 a 1968, avaliou recentemente que os próprios Estados Unidos, por sua tendência a agir unilateralmente e "sem respeito para com as preocupações dos outros" tinham se tornado um "Estado-bandido". Cf. Flora Lewis, "Some Learn Power´s Hard Lessons Better Than Others", The International Herald Tribune, 26 de junho de 2000.


(7)Ler, de Philip Bowring, "Rogue States are Overrated", The International Herald Tribune, 26 de junho de 2000.


(8)Ler The Real War on Crime: the Report of the National Criminal Justice Commission (dirigido por Steve Donziger), ed. Harper Collins, Nova Iorque, 1996.


(9)Ler, de Pierre Salinger e Eric Laurent, Guerre du Golfe, le dossier secret, Paris, ed. Oliver Orban, 1990.


(10)Ler "Timor-Oriental, l´horreur et l´amnésie", Le Monde Diplomatique, outubro de 1999.


(11)Citado por Charles Grass, Prospect, Londres, 1998.


(12)Ler, de Roland Pierre Paringaux, "Lourdes séquelles au Timor-Oriental", Le Monde Diplomatique, maio de 2000.


(13)The New York Times, 26 de maio de 1993.


(14)Ler, de Alain Gresh, "Guerres Saintes", Le Monde Diplomatique, setembro de 1998.


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terça-feira, 28 de abril de 2009

UMA SEMANA COM NOAM CHOMSKY - UM ANARQUISTA NO MIT


UM ANARQUISTA NO MIT

"Noam Chomsky é o culpado dessa situação, ou seja, porque ainda não temos bons programas de tradução automática. É tão brilhante, e sua teoria de gramáticas geracionais, tão boa, que por 40 anos foi usada por todo mundo nesse campo, deslocando o foco da semântica para a sintaxe", reclama o engenheiro computacional Marvin Minsky, professor titular do Massachussets Institute of Technology, MIT. Chomsky é o tipo de pessoa que brilha mesmo quando acusado.

Mas a linguística não é seu único ramo de destaque. Como cientista político, o norte-americano é um dos intelectuais mais respeitados hoje no mundo. Notório pela perspicaz crítica à política externa norte-americana, consulta obrigatória para uma maior compreensão do capitalismo. "Com o fim da Guerra Fria, os países do terceiro mundo estão mais submissos ao poder dos EUA. Essa é a razão pelo qual os golpes militares não são mais necessários na América Latina. Hoje existem os "senados virtuais", a dívida externa, a liberalização do capital como formas de controle. Claro que as elites latino-americanas participam de tudo isso. Elas adoram esses esquemas, sempre foi assim. A Inglaterra não dominou a Índia com tropas inglesas - as elites na Índia foram cúmplices e enriqueceram com a ocupação, enquanto o país se tornava cada vez mais miserável", denuncia Chomsky.

Em relação ao Brasil, o pensador defende a idéia de que a dívida externa deveria ser cancelada. "98% da população não tem nada a ver com ela, quem a contraiu foram os ditadores, os grandes latifundiários e a elite". No passado, Cuba e Costa Rica tiveram suas dívidas canceladas, pois, houve certo consenso(forçado, claro) de que se tratavam de dívidas injustas, empurradas à nação. Chomsky diz que essa é exatamente a situação dos países do terceiro mundo.

Mas esse não é o assunto da entrevista a seguir. Publicada em 1996, na edição nº 2 da revista Red & Black Revolution, gira em torno da visão do pensador sobre a ideologia dominante e suas alternativas. O pensador respondeu as perguntas de Kevin Doyle por escrito.

RBR: Em primeiro lugar, Noam, por muito tempo você tem defendido a ideologia anarquista. Muitas pessoas estão familiarizadas com a introdução que você escreveu em 1970 para o "Anarchism" de Daniel Guerin. Porém, mais recentemente, como no filme "Manufacturing Consent", você aproveitou a oportunidade para novamente frisar o potencial do anarquismo e da ideologia anarquista. O que te atrai no anarquismo?

CHOMSKY: Eu fui levado ao anarquismo como adolescente, assim que passei a ver o mundo além de um ângulo bem fechado, e desde então, não tenho visto motivos para repensar essa distante atitude. Considero o anarquismo singularmente válido para procurar e identificar estruturas de autoridade, hierarquia e dominação, em qualquer aspecto da vida, e para desafiá-las. Ao menos que haja uma justificativa, são ilegítimas e deveriam ser desmanteladas, para aumentar o nível de liberdade humana. Isso inclui poder político, posse e administração, relações entre homens e mulheres, pais e filhos, a nossa responsabilidade no destino das futuras gerações (o imperativo moral básico atrás de qualquer movimento social, a meu ver), e por aí vai. Naturalmente, isso significa desafiar às gigantes instituições de coerção e controle: o estado, às irresponsáveis tiranias privadas que controlam a maior parte da economia doméstica e internacional, e tudo mais. Mas não apenas essas. É isso o que eu sempre entendi ser a essência do anarquismo: a convicção de que a 'obrigação de se explicar' é da autoridade, e ela deveria ser desmontada caso a obrigação não seja cumprida. Se eu estou dando um passeio com meus netos e eles se atiram numa rua cheia de carros, usarei não apenas autoridade mas também coerção física para impedí-los. O ato poderia ser contestado, mas acho que receberia isso com prazer. E há outros casos; a vida é um assunto complicado, nós entendemos muito pouco sobre as pessoas e a sociedade, e veredictos majestosos são, geralmente, mais uma fonte de dano do que de benefício. Mas o ponto de vista tem lógica, creio eu, e pode nos conduzir perfeitamente por um bom caminho. Além dessas generalidades, nós também passamos a olhar para situações que são justamente aonde surgem as questões de interesse e preocupação humanas.

RBR: É correto dizer que suas idéias e críticas são hoje mais amplamente conhecidas do que antes. Poderia também ser dito que suas opiniões são amplamente respeitadas. Como você acha que seu apoio ao anarquismo é recebido dentro desse contexto? Particularmente, estou interessado na resposta que você recebe das pessoas que estão se interessando por política pela primeira vez e que talvez tenham cruzado com suas opiniões. Pessoas como essas se surpreendem com seu apoio ao anarquismo? Elas se interessam?

CHOMSKY: A intelectualidade em geral, como você sabe, associa anarquismo com caos, violência, bombas, ruptura, e por aí vai. Então as pessoas são frequentemente surpreendidas quando me vêem falar positivamente do anarquismo, quando me identifico com as principais idéias. Mas minha impressão é que entre o público em geral, as idéias básicas parecem razoáveis quando as nuvens se dissipam. Claro que quando nos viramos para questões específicas - digamos, a natureza das famílias, ou como uma economia poderia funcionar numa sociedade que é mais livre e justa - dúvidas e polêmicas aparecem. Mas é assim que deve ser. A física não pode realmente explicar como a água flui da torneira para sua pia. Quando nós encaramos problemas mais vastamente complexos, de valor humano, o consenso é muito pequeno. Há muito espaço para discórdia e a especulação, tanto mental quanto empírica das possibilidades, para nos ajudar a apreender mais.

RBR: Talvez, mais que nenhuma outra coisa, o anarquismo tenha sido vítima da deturpação. Anarquismo pode significar coisas diferentes para as pessoas. Você precisa explicar, com frequência, o que é que você entende por anarquismo? A deturpação que o anarquismo sofre te incomoda?

CHOMSKY: Toda deturpação é uma moléstia. Muito desse fenômeno tem sua origem em estruturas de poder que têm interesse em evitar a compreensão, por motivos bastante óbvios. Vale a pena recordar "Principles of Government" de David Hume. Ele manifestou surpresa com o fato das pessoas sempre terem se submetido às regras 'deles'. Conclui que "a força está sempre do lado dos governados, os governadores não têm nada para se sustentar a não ser a opinião. Então, na opinião apenas, é que esse governo está fundamentado; e essa regra se estende aos governos mais despóticos e militarizados, tão bem quanto aos mais livres e populares." Hume era muito perspicaz e, por acaso, dificilmente um libertário, segundo os padrões da época. Ele com certeza subestimou a eficácia da 'força'. Mas sua observação me parece basicamente correta e, particularmente, essencial para as sociedades mais livres, onde a arte de controlar a opinião é refinadíssima. Deturpação e outras formas de confundir são acessórios naturais. Então, a deturpação me incomoda? Claro, mas do mesmo modo que um clima pútrido. Ela irá existir enquanto as concentrações de poder continuarem produzindo uma espécie de classe supervisora para defendê-las. Já que elas não costumam ser muito brilhantes - ou são brilhantes apenas o suficiente para saberem que é melhor evitar a arena do fato e do argumento - se apoiam na deturpação, satanização, e outros dispositivos à mão de quem sabe que está protegido pelos diversos meios à serviço do mais forte. Nós deveríamos entender como tudo isso ocorre, e desatar da melhor maneira possível. Isso é parte do projeto de libertação - de nós mesmos e dos outros, ou mais razoavelmente, de pessoas trabalhando em conjunto para alcançar esse objetivo. Parece simplório e é. Mas apesar disso, quando o absurdo e a postura subserviente predominam, eu tenho que encontrar muitos pontos de vista sobre a vida humana e a sociedade, que não são simplórios.

RBR: E nos círculos de esquerda mais bem definidos(onde espera-se encontrar mais familiaridade com o que o anarquismo atualmente representa)? Você encontra alguma surpresa devido às suas opiniões e seu apoio ao anarquismo?

CHOMSKY: Se entendi o que quer dizer 'círculos de esquerda mais bem definidos', neles não há muita surpresa sobre minhas opiniões em relação ao anarquismo, pois muito pouco se conhece sobre minhas opiniões sobre qualquer coisa. Esses não são os círculos com que eu lido. Você raramente encontrará uma referência à qualquer coisa que eu diga ou escreva. Claro que isso não é inteiramente verdade, assim, nos EUA (mas raramente no Reino Unido ou qualquer outro lugar), em alguns dos setores mais críticos e independentes, que poderiam ser chamados de 'círculos de esquerda definidos', você pode encontrar alguma familiaridade com o que eu faço; e eu tenho amigos e associações espalhadas aqui e ali. Mas dê uma olhada nos livros e jornais, e você verá o que quero dizer. Eu não espero que o que eu escreva e diga seja melhor recebido nesses círculos do que nos clubes de faculdades ou nas redações de jornais - de novo, com algumas exceções. A questão é apenas secundária, tanto que fica difícil responder.

RBR: Muitas pessoas têm notado que você usa o termo 'socialismo libertário' da mesma maneira que você usa a palavra 'anarquia'. Você vê esses termos como sendo basicamente similares? O anarquismo é um tipo de socialismo pra você? A comparação tem sido feita no sentido de 'anarquismo é equivalente à socialismo com liberdade'. Você concordaria com esse enunciado básico?

CHOMSKY: O prefácio para o livro de Guerin que você mencionou começa com uma citação de um simpatizante do anarquismo de um século atrás, que diz que 'o anarquismo tem uma forte defesa' e 'aguenta qualquer coisa'. Um grande fator disso tem sido o que tradicionalmente vem sendo denominado como 'socialismo libertário'. Tentei explicar no prefácio e aonde quer que estive, o que quis dizer com aquilo, enfatizando que dificilmente seria algo novo; me refiro às idéias dos líderes anarquistas que citei, e que, de modo particularmente consistente, descrevem-se como socialistas ao mesmo tempo que condenam duramente a 'nova classe' de intelectuais radicais, que procuravam alcançar o poder no curso da luta popular para depois se tornarem a viciosa 'burocracia vermelha', a qual Bakunin alertou, e que geralmente é chamada de 'socialismo'. Eu concordo, especialmente, com a teoria de Rudolf Rocker de que essas tendências(absolutamente decisivas) no anarquismo vêm da melhor porção do iluminismo e do pensamento liberal clássico, muito além do que ele descreveu. De fato, como eu tentei mostrar, elas diferem nitidamente da teoria e prática do marxismo/leninismo, das doutrinas 'libertárias' que são confeccionadas nos EUA e no Reino Unido em particular, de outras ideologias contemporâneas, e de todas que parecem se reduzir à defesa de uma ou outra forma de autoridade ilegítima, oferecendo, de fato, a verdadeira tirania.

A REVOLUÇÃO ESPANHOLA

RBR: No passado, quando você costumava falar de anarquismo, você muitas vezes se concentrava no exemplo da Revolução Espanhola. Para você, parecia haver dois aspectos nesse exemplo. Por um lado, a experiência da Revolução Espanhola é uma boa demonstração do 'anarquismo em ação'. Por outro, você enfatiza que é um bom exemplo de como os trabalhadores podem se fundamentar em seus próprios esforços, usando democracia participativa. Esses dois aspectos - anarquismo em ação e democracia participativa - são apenas um e a mesma coisa para você? O anarquismo é uma filosofia para o poder do povo?

CHOMSKY: Eu sou relutante em usar polissílabos enfeitados como "filosofia" para me referir ao que aparenta ser apenas bom-senso. Também me sinto desconfortável com slogans. Os feitos dos trabalhadores e camponeses na Espanha, antes da revolução ser esmagada, foram impressionantes em diversos sentidos. O termo 'democracia participativa' é recente, e foi desenvolvido em outro contexto, mas certamente existem pontos de contato. Me desculpe se isso soa evasivo. Certamente é, mas isso porque eu não acho que o conceito, tanto de anarquismo quanto de democracia participativa, está claro o suficiente para eu poder responder se são a mesmo coisa.

RBR: Um dos principais feitos da Revolução Espanhola foi o passo da democracia baseada no povo. Em termos de população, estima-se que mais de 3 milhões estavam envolvidos. A produção rural e urbana foi administrada pelos próprios trabalhadores. Na sua opinião, é uma coincidência que anarquistas, notórios por sua defesa da liberdade individual, tenham tido sucesso no ramo da administração coletiva?

CHOMSKY: Absolutamente nenhuma coincidência. As tendências no anarquismo, que eu sempre achei mais convincentes, apontam para uma sociedade altamente organizada, integrando diversos formas de estruturas(área de trabalho, comunidade, e muitos outros tipos de associação voluntária), porém, controladas pelos participantes, não por aqueles em posição de dar ordens (exceto, de novo, quando a autoridade pode ser justificada, como, as vezes, é o caso em situações bem específicas).

DEMOCRACIA

RBR: Anarquistas costumam realizar grandes esforços na construção da democracia popular. Sem dúvida, eles são muitas vezes acusados de querer 'levar a democracia à extremos'. Apesar disso, muitos anarquistas não poderiam identificar, prontamente, a democracia como um componente central da filosofia anarquista. Costumam descrever sua política de forma parecida com a do socialismo ou então como algo sobre o individual - eles são menos propensos a falar que anarquismo é democracia. Você concordaria que ideais democráticos são o ponto central do anarquismo?

CHOMSKY: O entendimento da democracia entre anarquistas costuma ser o entendimento da democracia parlamentar, conforme ela tem aparecido dentro de sociedades com profundas características repressivas. Pegue os EUA, o qual tem sido tão livre como qualquer outro país, desde o começo. A democracia norte-americana foi fundada no princípio, destacado por James Madison no tratado constitucional de 1787, de que a função prioritária do governo é 'proteger a minoria abastada da maioria'. Desse modo, ele alertou que se a Inglaterra - a única democracia aparente de acordo com os modelos vigentes - permitisse ao povo em geral participar dos assuntos públicos, eles poderiam implementar a reforma agrária e outras 'atrocidades'; e que o sistema americano precisa ser cuidadosamente esculpido para que tal crime seja evitado, pois os 'direitos de propriedade' devem ser defendidos (na verdade, devem vencer). Dentro desse contexto, a democracia parlamentária merece a crítica ácida dos libertários genuínos. E eu omiti muitas outras características nada sutis - como o escravidão, para mencionar apenas uma; ou então o salário escravo, duramente criticado por trabalhadores que não tinham sequer ouvido falar de anarquismo ou comunismo, justamente no século XIX pra frente. Leninismo

RBR: A importância da democracia popular para qualquer mudança significativa na sociedade parece ser evidente por si só, apesar da esquerda ter sido ambígua sobre isso no passado. Falo sobre a esquerda em geral - da social-democracia, mas também do bolchevismo - tradições de esquerda que, possivelmente, têm mais semelhança com o pensamento da elite do que com a verdadeira prática democrática. Lenin, para usar um exemplo bastante conhecido, era cético em relação a possibilidade dos trabalhadores serem capazes de desenvolver qualquer outra coisa além do sindicato. Pra mim, ele quis que os trabalhadores não podem enxergar além dos problemas imediatos. De modo parecido, a socialista fabianista, Beatrice Webb, muito influente no Partido dos Trabalhadores inglês, achava que os trabalhadores se interessavam apenas pelas corridas de cavalo. Qual a origem desse elitismo e quais suas conseqüências para a esquerda?

CHOMSKY: Temo que seja difícil para mim responder isso. Se o bolchevismo está incluído na esquerda, então eu poderia me separar totalmente dela. Lenin foi um dos grandes inimigos do socialismo, na minha opinião, por motivos que eu tenho colocado. A idéia de que trabalhadores estão apenas interessados nas corridas de cavalo é um disparate que não resiste a uma rápida olhada na história do trabalho ou da ativa e independente imprensa sindical, que floresceu em muitos lugares, incluindo as cidades-fábricas de New England, perto de onde eu escrevo. Sem falar no inspirador registro de batalhas travadas pelos perseguidos e oprimidos em toda a história até os dias de hoje. Pegue o mais miserável canto deste hemisfério: Haiti, visto pelos conquistadores europeus como um paraíso, foi origem de uma parte considerável da riqueza européia. Hoje está devastado, talvez de maneira irreversível. Poucos anos atrás, sob condições que poucas pessoas nos países ricos poderiam imaginar, camponeses e favelados organizaram um movimento pela democracia popular que ultrapassa tudo que eu ouvi falar. Só mesmo alguns ministros profundamente comprometidos poderiam não morrer de rir, ao ouvir os solenes discursos de intelectuais e políticos norte-americanos sobre as lições de democracia que os EUA têm a ensinar aos haitianos. Os feitos desses haitianos foram tão sólidos e apavorantes ao poder, que o povo teve que se sujeitar a outra dose de terror, cujo patrocínio norte-americano é muito maior do que as pessoas imaginam. E eles ainda não se renderam! Estão interessados apenas em corridas de cavalo? Sugiro algumas linhas de Rousseau que costumo citar: "Quando vejo multidões de selvagens inteiramente nus desdenharem a opulência européia e suportar fome, fogo, a espada e a morte para preservar sua independência, sinto que não cabe a escravos tentar entender a liberdade."

RBR: Seu trabalho - "Deterring Democracy", "Necessary Illusions", entre outros - tem abordado consistentemente a função e predomínio dos ideais elitistas nas sociedades como a nossa. Você tem argumentado que dentro da democracia ocidental (ou parlamentar) há uma profunda oposição à qualquer função ou contribuição verdadeira da massa popular, para que a irregular distribuição de renda, favorável aos ricos, não seja ameaçada. Nisso, seu trabalho é muito convincente, mas algo em suas afirmações tem causado surpresa. Por exemplo, você compara a política de John F. Kennedy com a usada por Lenin. Isso, eu poderia acrescentar, tem chocado simpatizantes de ambos os lados! Você poderia discorrer um pouco sobre a validade da comparação?

CHOMSKY: Eu não equiparei, de todo, as doutrinas liberais da administração Kennedy com as leninistas. O que fiz foi listar os evidentes pontos de intercessão, particularmente, da maneira como previu Bakunin, um século antes, em seu agudo comentário sobre a 'nova classe'. Por exemplo, eu citei passagens de McNamara sobre a necessidade de 'aumentar o controle administrativo se pretende-se ser realmente livre', e sobre como a sub-administração, que é a 'verdadeira ameaça à 'democracia', é uma agressão irracional. Mude algumas poucas palavras nessas passagens, e nós temos a clássica doutrina leninista. Já as causas, são especialmente profundas, em ambos os casos. Sem a devida explicação sobre o que as pessoas consideram chocantes, eu não posso responder satisfatoriamente. As comparações são específicas e eu as julgo adequadamente justas. Se não, estou equivocado, e me interessaria ser esclarecido.

MARXISMO

RBR: Especificamente, o leninismo se refere à forma como o marxismo foi conduzido por Lenin. Você está separando, de modo incondicional, os tratados de Marx da particular análise que você faz de Lenin, quando você usa o termo 'leninismo'? Você vê uma continuidade entre Marx e as atitudes de Lenin?

CHOMSKY: Os alertas de Bakunin sobre a 'burocracia vermelha', que instituiria 'o pior de todos os governos despóticos', foram feitos muito antes de Lenin, e eram dirigidos aos seguidores do Sr. Marx. Houve, de fato, seguidores de diversos tipos. Pannekoek, Luxembourg, Mattick e outros estão muito longe de Lenin, e seus pontos de vista muitas vezes convergem em elementos do anarco-sindicalismo. Korsch e outros escreveram de maneira simpática à revolução anarquista na Espanha. Existe sim, prosseguimento de Marx para Lenin, mas ele também existe em marxistas que foram ásperos críticos de Lenin e do bolchevismo. O trabalho de Teodor Shanin, anos atrás, sobre as últimas posições de Marx em relação a revolução camponesa, também é relevante. Estou longe de ser um estudioso de Marx, e não me aventuraria a qualquer julgamento sério sobre qual dessas linhas reflete o 'verdadeiro Marx', se é que pode haver uma resposta para isso.

RBR: Recentemente, nós obtemos uma cópia do seu livro "Notes on Anarchism". Nele, você comenta algumas posições do 'Marx inicial', em particular, o desenvolvimento da idéia de alienação sob o capitalismo. Você aceita, em termos gerais, essa divisão na vida e obra de Marx: um jovem libertário socialista, e , nos últimos anos, um rígido autoritário?

CHOMSKY: O 'Marx inicial' se deve certamente ao ambiente em que ele vivia, podendo-se encontrar muita semelhança com o pensamento que gerou o liberalismo clássico, aspectos do iluminismo e do romantismo francês e alemão. Novamente, não estudei Marx suficientemente para pretender um julgamento final. Minha inpressão, até aonde ela cabe, é que o Marx inicial foi mais uma figura do iluminismo tardio, e o Marx posterior, um ativista altamente autoritário, um analista crítico do capitalismo que tinha muito pouco a dizer sobre alternativas socialistas. Mas isso são impressões.

RBR: Pelo que entendi, o centro de sua visão analítica é produto da idéia que você faz da natureza humana. No passado, a natureza humana era encarada como algo, talvez, regressivo, até limitado. Por exemplo, o aspecto imutável da natureza humana é muitas vezes usado como argumento de que as coisas não podem mudar realmente. É um argumento usado contra o anarquismo. Você tem uma visão diferente? Por que?

CHOMSKY: A base do ponto de vista de qualquer um é sempre algum julgamento da natureza humana, mesmo que a opinião esteja longe da perspicácia ou careça de articulação. Pelo menos, isso vale para pessoas que se consideram agentes morais, não monstros. Tirando os monstros, alguém que apoie a reforma ou revolução, estabilidade ou retorno à estágios ancestrais, ou simplesmente o cultivo do próprio jardim, tem sempre firmes convicções de que aquilo é 'bom para as pessoas'. Esse julgamento é baseado em algum aspecto da natureza humana (a qual uma pessoa racional tentará ver o mais claro possível), admitindo que isso pode ser avaliado. Então nesse ponto eu não sou diferente de ninguém. Você está certo quando diz que a natureza humana tem sido vista como algo regressivo, mas isso deve ser resultado de profunda confusão. Minha neta não é diferente de uma rocha, uma salamandra, uma galinha, um macaco? Uma pessoa que solta tão improvável absurdo, admite que existe uma natureza humana distinta. Sobra então apenas a questão sobre o que é ela? Uma questão singular e fascinante, de enorme interesse científico e significado humano. Conhecemos uma quantia considerável sobre certos aspectos dela, mas não aqueles de maior significado humano. Além disso, sobram esperanças e desejos, intuições e especulações. Não há nada de retrógrado no fato do embrião humano ser limitado a ponto de não crescer asas, ou que seu sistema visual não funcione como o de um inseto, ou que nos falta o 'instinto de lar' dos pombos. Os mesmos fatores que limitam o desenvolvimento do organismo também capacitam-no para atingir uma estrutura rica, complexa e altamente articulada. Basicamente, fatores, comuns a todos, que habilitam capacidades notáveis. Um organismo desprovido dessa estrutura intrínseca e determinante - que, claro, terá um desenvolvimento radicalmente limitado - seria algum tipo de criatura amebóide, lamentável (mesmo se pudesse sobreviver). A área e os limites do desenvolvimento estão sistematicamente catalogadas. Pegue, por exemplo, a linguagem. Uma das poucas capacidades específicas humanas que se conhece bastante. Nós temos razões muito fortes pra acreditar que todas as línguas humanas são muito parecidas; um cientista marciano nos observando concluiria que há apenas uma linguagem, com pequenas variações. O motivo é que o aspecto da natureza humana, que possibilita a consolidação de uma linguagem, permite opções bastante restritas. Isso é limitação? Claro. Isso é liberação? Claro, também. São essas restrições que possibilitam um rico e intrincado sistema de expressão do pensamento, se desenvolver de maneiras parecidas; baseadas em experiências rudimentares, dispersas e variadas. E sobre o problema das diferenças biologicamente determinadas entre as pessoas? Que existem, não há dúvida; e é um motivo de alegria, não de medo ou lamentação. A vida entre clones não seria adequada, e, uma pessoa equilibrada irá apenas se alegrar com o fato de outras possuírem habilidades exclusivas. Isso deveria ser básico. O que geralmente as pessoas acreditam em relação à raça é realmente muito estranho, para mim. A natureza humana, o que quer que seja isso, favorece o desenvolvimento de formas de vida anarquista? Desfavorece? Nós não sabemos o suficiente para responder nem uma, nem outra. Essas são questões para a experimentação e a descoberta, não discursos vazios.

FUTURO

RBR: Antes de terminar, eu queria lhe perguntar resumidamente sobre alguns fatos que estão ocorrendo na esquerda. Eu não sei se é assim nos EUA, mas aqui, com a queda da URSS, teve início um certa desmoralização da esquerda. Não que as pessoas fossem amáveis patrocinadoras do que houve na URSS, mas, há um sentimento generalizado de que a queda da URSS arrastou também o ideal socialista. Você tem topado com esse tipo de desmoralização? Qual a sua reação?

CHOMSKY: Minha reação ao fim da tirania soviética foi parecida com o que senti com a destruição de Hitler e Mussolini. Em todo caso, é uma vitória do espírito humano. Isso deveria ser especialmente bem-vindo para os socialistas, já que um grande inimigo do socialismo finalmente caiu. Como você, eu fiquei intrigado em ver como as pessoas ligadas à esquerda - inclusive aquelas que se consideram anti-Stalin/Lenin - foram desmoralizadas com o colapso da tirania. O que isso revela é que elas estavam mais profundamente associados ao Leninismo do que imaginavam. Há, contudo, outros motivos de preocupação em relação ao fim desse sistema tirânico e brutal, que era tão 'socialista' quanto 'democrático' (lembre-se que Ele dizia ser os dois; a última característica foi ridicularizada no Ocidente, enquanto que a primeira foi avidamente engolida, como se fosse um defeito do socialismo - um dos muitos exemplos do serviço que os intelectuais ocidentais têm prestado ao poder). Uma desses motivos tem a ver com a natureza da guerra fria. Na minha opinião, ela foi, em grande parte, um caso específico do 'conflito Norte-Sul', usando o eufemismo corrente. O leste europeu tem sido o verdadeiro 'terceiro-mundo', e a Guerra Fria a partir de 1917 não tem a menor semelhança com as tentativas de outras partes do 'terceiro-mundo' seguirem caminho próprio, embora nesses casos, diferenças de proporção deram ao conflito vida própria. Por essa razão, foi apenas lógico aguardar o leste europeu retornar devidamente à condição anterior; podia-se esperar que certas partes do leste, como a República Tcheca ou a Polônia Oriental, fossem restituídas, enquanto outras voltam à função tradicional; a ex-Nomenklatura se tornando a elite padrão do terceiro-mundo (com a aprovação da corporação de estados ocidentais, que geralmente prefere isso à alternativas). Essa não é uma boa perspectiva e ela tem levado à imenso sofrimento. Outro motivo de preocupação tem a ver com a questão do retrocesso e do não-alinhamento. Grotesco como o império soviético foi, sua existência oferecia certo espaço para o não-alinhamento, e por razões puramente cínicas, ele as vezes fornecia assistência às vítimas do ataque ocidental. Essas alternativas não existem mais, e o sul está sofrendo as consequências. Um terceiro motivo tem a ver com o que a imprensa empresarial chama de 'os trabalhadores ocidentais mimados' e seus 'luxuosos estilos de vida'. Com grande parte da Europa Oriental retornando ao isolamento, proprietários e empresários têm novas e poderosas armas contra a classe trabalhadora e os pobres em geral. A General Motors e a Volkswagen podem transferir a produção não apenas para o México e Brasil (ou no mínimo ameaçar, o que no geral é a mesma coisa), mas também para a Polônia e Hungria, aonde podem encontrar mão de obra adequada por uma fração do custo. Eles estão radiantes com isso, o que é compreensível, dadas as condições. Nós podemos aprender muito sobre o que foi a Guerra Fria (ou qualquer outro conflito) olhando quem está feliz e quem está infeliz ao seu término. Por esse critério, os vitoriosos da Guerra Fria incluem as elites ocidentais e a ex-Nomenklatura, agora ricos num ponto além de seus sonhos mais selvagens, e os perdedores incluem grande parte do população do leste junto com os trabalhadores e os pobres do oeste, tanto quanto os setores populares do sul que tem procurado um caminho independente. Idéias desse tipo tendem a causar histeria entre intelectuais ocidentais, quando eles sequer entendem, o que é raro. Isso é fácil de demonstrar. É também compreensível. As observações são justas, e subvertem o poder e o privilégio; logo, histeria. No geral, as reações de uma pessoa honesta ao final da Guerra Fria serão mais complexas do que simplesmente curtir o colapso de uma tirania brutal, e as reações que prevalecem encobrem hipocrisia extrema, na minha opinião.

CAPITALISMO

RBR: Em muitos sentidos, a esquerda hoje se encontra novamente ao seu ponto de origem no último século. É desse modo que ela encara um tipo de capitalismo que é reinante. Hoje parece haver enorme consenso, maior que em qualquer época da história, de que o capitalismo é a única maneira válida de organização econômica, isso apesar do fato do bem-estar não ser extenso como o fenômeno. Nesse cenário, alguém poderia argumentar que a esquerda é insegura na questão de como avançar. Como você encara a época atual? É uma questão de 'volta as origens'? O esforço deveria ser no sentido de buscar a tradição libertária do socialismo e enfatizar os ideais democráticos?

CHOMSKY: Isso é, quase sempre, propaganda, na minha opinião. O que é chamado 'capitalismo', basicamente, é um sistema de mercantilismo corporativo, com enormes e abundantes tiranias privadas irracionais exercendo vasto controle sobre a economia, política, vida social e cultural; operando em íntima associação com países poderosos que intervêm maciçamente tanto na economia interna como internacional. Infelizmente, isso é verdade em relação aos EUA, contrariando a ilusão. Os ricos e privilegiados não estão mais com a vontade de encarar a disciplina do mercado como no passado, embora considerem isso adequado para a população em geral. Citando só alguns exemplos: a administração Reagan, aquela que tirou enorme proveito da retórica do livre-mercado, foi também a mais protecionista da história norte-americana do pós-guerra - hoje, superam todas os outros países juntos. Newt Gingrich, quem guia a atual 'cruzada', representa uma região riquíssima. Recebe mais subsídios federais do que qualquer região suburbana no país, além do próprio sistema federal. Os 'conservadores' que estão pedindo o fim da merenda para crianças necessitadas também estão pedindo um aumento de verbas para o Pentágono, as quais foram estabelecidas no final de 1940 e ainda são as mesmos porque, como a imprensa empresarial foi gentil o bastante para nos dizer, a indústria de tecnologia de ponta não pode sobreviver numa 'economia pura, competitiva, não-subsidiada e livre', e o governo deve ser seu 'benfeitor'. Sem o 'benfeitor', os eleitores de Gingrich seriam trabalhadores pobres (se tivessem sorte), não haveria computadores, eletrônicos em geral, indústria aérea, metalurgia, automação, etc. Anarquistas, de todos os povos, não deveriam se deixar levar por essas fraudes clássicas. Mais do que nunca, as idéias libertárias socialistas são relevantes, e a população está aberta a elas. Apesar da gigantesca corporação de propaganda para as massas, fora dos círculos instruídos, o povo ainda mantém muitas das suas posições tradicionais. Nos EUA, por exemplo, mais de 80% da população vê o sistema econômico como 'injusto por natureza' e o sistema político como uma fraude, que serve 'interesses específicos', não ao povo. A maioria absoluta pensa que os trabalhadores têm muito pouca voz ativa nos assuntos públicos (o mesmo na Inglaterra), que o governo tem a responsabilidade de dar assistência às pessoas necessitadas, que investimentos em educação e saúde deveriam ter prioridade em relação à cortes no orçamento público, que as atuais propostas republicanas correndo pelo congresso beneficiam os ricos e lesam o povo, e por aí vai. Intelectuais podem contar outra história, mas não é muito difícil encontrar os fatos.

RBR: Num ponto, as idéias anarquistas tem sido justificadas pelo colapso da União Soviética - as profecias de Bakunin têm-se verificado corretas. Você pensa que os anarquistas devem se encorajar com essa situação, com a coerência da análise de Bakunin? Os anarquistas deveriam encarar o futuro com maior segurança em suas idéias e história?

CHOMSKY: Eu acho, no mínimo espero, que a resposta está implícita na questão. Eu creio que a era atual pressagia algo de ameaçador, e traz grande expectativa. O que acontecerá depende do que fazemos com as oportunidades.

RBR: Por último, Noam, um outro tipo de questão. Nós temos um pouco de Guinness separado para você aqui. Quando você virá beber?

CHOMSKY: Mantenha o Guinnes pronto. Acho que não vai demorar muito. Eu estaria aí amanhã, se pudesse. Nós (minha esposa me acompanhou, coisa rara nessas constantes viagens) tivemos momentos maravilhosos na Irlanda, e adoraríamos voltar. Por que não voltamos? Não te incomodarei com os detalhes sórdidos, mas a necessidade é imensa e cresce cada vez mais - um reflexo das situações que tenho tentado descrever.

(Relapsa tradução de Romeu Musseb)

segunda-feira, 27 de abril de 2009

UMA SEMANA COM NOAM CHOMSKY - ENTREVISTA A SÉRGIO DÁVILA


ENTREVISTA A SÉRGIO DÁVILA
da Folha de S.Paulo 30/01/2002


Com a escritora Susan Sontag e o jornalista Richard Reeves, Noam Chomsky forma a atual trindade de anticristos da opinião pública norte-americana.


Assim como seus dois colegas liberais, o renomado linguista já foi hostilizado nas ruas e na imprensa por suas opiniões e passou a ser persona non grata em diversos ambientes intelectuais depois do ataque de 11 de setembro.


Também, pudera. Para ele, os EUA são os verdadeiros terroristas, como disse em entrevista à Folha: "É preciso uma boa dose de disciplina por parte dos intelectuais do Ocidente para "não perceberem" que a tal Guerra contra o Terror é protagonizada pelo país que mais foi condenado em instâncias internacionais por suas práticas terroristas".


Chomsky chega ao Brasil amanhã para o Fórum Social Mundial, que acontece em Porto Alegre em paralelo ao Fórum Econômico Mundial de Nova York.


O intelectual ensina linguística no prestigioso Massachusetts Institute of Technology (MIT) e, nas horas vagas, exerce a profissão de que mais gosta desde a Guerra do Vietnã: a de principal crítico do governo norte-americano, de seus aliados e da globalização.


Seus detratores dizem que este papo já virou lengalenga. Seus defensores afirmam que não fosse por ele o ambiente intelectual nos EUA seria uníssono. Leia a seguir os principais trechos de sua entrevista, concedida por e-mail.


Folha - Na sua opinião, o mundo mudou para pior ou para melhor depois dos ataques terroristas de 11 de setembro?


Noam Chomsky - Por centenas de anos, a Europa e seus asseclas praticaram terror em larga escala e atrocidades no resto do mundo. Em 11 de setembro, pela primeira vez, eles foram o alvo das mesmas atrocidades. Obviamente a reação tem sido extremamente violenta, liderada pelos Estados Unidos e por seu parceiro júnior, o Reino Unido, ambos com vasta experiência em lidar com o extermínio de "raças menos favorecidas".


É preciso uma boa dose de disciplina por parte dos intelectuais do Ocidente para "não perceberem" que a tal Guerra contra o Terror é protagonizada pelo país que mais foi condenado por suas práticas terroristas em instâncias internacionais como o Tribunal de Justiça Internacional e o Conselho de Segurança da ONU, em resolução que teve veto dos EUA e abstenção do Reino Unido.


O ataque a civis afegãos é tão selvagem e destruidor quanto o que o motivou, mas passa quase despercebido pela mídia internacional, já que, diferentemente daquele, não foge à regra histórica. E é preciso dizer que a tal Guerra contra o Terror é apoiada por países que querem aval para legitimar suas atrocidades, como a Rússia e sua ação na Tchetchênia.


Mas no geral o mundo mudou para pior, pelo menos temporariamente. Os responsáveis pelos ataques de 11 de setembro cometeram um terrível crime não só contra as vítimas americanas mas também contra os pobres do mundo todo, ao detonarem uma reação em cadeia que vai vitimar países em geral pobres, democracias frágeis e os direitos humanos.


Folha - A situação do Afeganistão, pelo menos, não melhorou após a guerra, com a queda do regime do Taleban?


Chomsky - Primeiro, poucos sabem que a tal ajuda humanitária que os Estados Unidos vêm prometendo aos afegãos só está começando a sair agora, quatro meses depois de prometida. Depois, as pessoas que estão sendo alçadas de volta ao poder no Afeganistão pelas mãos do governo dos EUA são as mesmas que nos anos 90 levaram o povo à miséria absoluta e prepararam o terreno para a aparição e ascensão do Taleban.


Folha - O sr. concorda que o presidente Bush é o homem certo no lugar certo, como parecem dizer pesquisas de opinião pública?


Chomsky - A pergunta pressupõe que o que ele vem fazendo é o certo, e isso só pode ser afirmado por quem apoia o terrorismo, a violência e a atrocidade em larga escala, o que não é absolutamente o meu caso. Quanto às pesquisas de popularidade, sugiro cautela.

Quando indagado se apoia o uso de violência contra os responsáveis pelos ataques terroristas, o povo norte-americano concorda em peso, mas se a pergunta menciona as inevitáveis perdas civis decorrentes, os números de aprovação caem bastante.


Folha - O presidente Fernando Henrique Cardoso ainda se define como um social-democrata. O sr. concorda com ele?


Chomsky - Tenho minha opinião sobre esse assunto, fique certo disso, mas prefiro não me manifestar a respeito.


Folha - Se convidado, o sr. participaria do Fórum Econômico Mundial, seja em Nova York, seja em Davos, na Suíça?


Chomsky - Só se fosse para me juntar aos manifestantes...


Folha - Como será sua participação no Fórum Social Mundial de Porto Alegre?


Chomsky - Não sei ao certo, mas acredito que os programas defendidos neste evento, como o fim desta globalização comandada pelas empresas multinacionais, são saídas importantes para os cada vez mais graves problemas da sociedade globalizada.

domingo, 26 de abril de 2009

UMA SEMANA COM NOAM CHOMSKY - Uma Noite Com Noam Chomsky


Uma Noite Com Noam Chomsky

18 de Outubro de 2001 - Transcrição de uma palestra conferida no Fórum de Tecnologia e Cultura, realizado no Instituto de Tecnologia de Michghan (MIT)

Todos sabem que é o pessoal da TV que governa o mundo [platéia ri]. Acabei de receber um ultimato obrigando-me a estar aqui e não lá. Bem, a última palestra que apresentei aqui nesse forum foi sobre um tópico bem mais agradável. Era sobre como nós, os homens, somos uma espécie em extinção e, dada a natureza de nossas instituições, estamos possivelmente bastante próximos de nos destruirmos a nós mesmos em pouquíssimo tempo. Agora podemos respirar aliviados, uma vez que o tópico de hoje ainda mais agradável: a nova guerra contra o terrorismo. Infelizmente, o mundo continua nos oferecendo coisas que o fazem cada vez mais terrível à medida que o tempo passa.

Eu vou considerar duas condições básicas para essa palestra.

A primeira delas é o que eu considero ser o reconhecimento do fato. Isto é, que os eventos de 11 de setembro foram uma atrocidade terrível, provavelmente o incidente mais devastador em toda a história do crime, fora a guerra. A segunda condição tem a ver com com os objetivos. Estou considerando que nosso objetivo é reduzir a probabilidade de tais crimes, sejam eles contra nós ou contra qualquer outra pessoa. Se alguém não aceitar tais condições, então o que eu vou dizer não está direcionado a essa pessoa. Se todos aqui aceitam-nas, então inúmeras questões podem ser levantadas, que merecem bastante reflexão.

Uma questão, e sem dúvida a mais importante, é: o que está acontecendo nesse exato instante? Implícita nela está outra questão: o que podemos fazer a respeito? A segunda tem a ver com o reconhecimento de que o que ocorreu em 11 de setembro é um evento histórico, um evento que mudará a História. Estou para concordar com isso. Penso ser verdade. Foi um evento histórico e a pergunta que devemos fazer é: por quê? A terceira pergunta tem a ver com o título "A Guerra Contra o Terrorismo". O que é isso exatamente? E há uma outra pergunta relacionada a essa última: o que é terrorismo? A quarta questão, que é mais restrita mas igualmente importante tem a ver com as origens dos crimes de 11 de setembro. E a quinta questão sobre a qual quero falar um pouco é que quais são as opções que temos para lutar contra o terrorismo e lidar com as situações que o propiciam.

Bem, vamos começar. Falarei sobre a situação no Afeganistão. Eu me limitarei apenas a fontes incontroversas, como o New York Times [platéia ri]. De acordo com o New York Times, há no Afeganistão um total de 7 ou 8 milhões de pessoas beirando a fome. Essa situação é verdadeira mesmo antes de 11 de setembro. Eles sobrevivem com ajuda de instituições internacionais. Em 16 de setembro a revista Times reportou que os EUA obrigaram que o Paquistão impedissem a entrada dos caminhões com provimentos de comida e outros mantimentos no Afeganistão. Pelo que pude averigüar, não houve nenhuma manifestação acerca disso nos EUA ou, por essa razão, na Europa. Esse assunto esteve em cadeia de radio nacional na Europa no dia seguinte. Não houve nenhum tipo de manifestação nos EUA ou na Europa, pelo que sei, para impedir essa imposição de matança massiva por fome de milhões de pessoas. A ameaça de ataques militares logo após os acontecimentos de 11 de setembro forçou a remoção de funcionários de ajuda internacional que trabalhavam em programas de assistência. Na verdade, estou novamente citando o New York Times. A imagens de refugiados alcançando o Paquistão depois de longas e penosas jornadas do Afeganistão eram cenas descritas como sendo de desespero e medo, à medida em que a ameaça de ataques liderados pelos EUA iam tornando os seus sofrimentos já antigos em uma catástrofe potencial. O país estava na beira de um precipício e nós o empurramos, citando um funcionário de ajuda que fora evacuado, tal como transcrito no New York Times.

O Programa Mundial da Comida da ONU, que é o principal entre os que lá existem, puderam retomar os serviços depois de três semanas, no início de outubro. Começaram devagar, dando continuidade à remessa de alimentos. Eles já não tinham funcionários de ajuda internacionais no Afeganistão, de forma que a distribuição dos alimentos foi paralizada. Isso foi feito assim que os bombardeios começaram. Puderam depois dar continuidade ao programa, mas de forma bem mais precária, enquanto as agências de ajuda começaram a levantar a voz condenando a iniciativa dos EUA de jogarem mantimentos pelo ar no Afeganistão, condenando-os como elementos de propaganda que traziam muito mais malefícios que benefícios. Depois da primeira semana de bombardeamento, o New York Times notou, numa página secundária, em apenas uma linha, num artigo sobre qualquer outra coisa, que pela aritimética da ONU haverá dentro em breve 7.5 milhões de afegãos em necessidade extrema por até mesmo um pedaço de pão, e que dentro de poucas semanas o inverno rigoroso fará com que a entrega de alimentos em determinadas áreas seja totalmente impossível, mas que - ainda no mesmo artigo - com o bombardeamento, a entega não deve chegar à metade do que se precisa. Um comentário casual. Que nos diz que a civilização ocidental está antecipando a matança de - é só fazer os cálculos - 3 ou 4 milhões de pessoas ou algo assim. No mesmo dia, o líder da civilização ocidental negou com desprezo, uma vez mais, as ofertas de negociação pela entrega do alvo alegado, Osama bin Laden, sob a entrega de alguma evidência para substanciar a demanda pela rendinção total. Isso foi negado. No mesmo dia a Porta-Voz oficial da ONU encarregada pela distribuição de alimentos implorou aos EUA que parassem o bombardeio no intuito de salvar milhões de vítimas. Pelo que sei, tal pedido sequer foi considerado. Isso foi numa segunda-feira. No dia 17 de outubro várias outras organizações juntaram-se à ONU no pedido de encerramento dos bombardeios. Isso não aparece no New York Times, mas é mencionado no Boston Globe, dentro de uma reportagem sobre outro tópico.

Bem, podíamos facilmente continuar, mas tudo isso nos mostra antes de tudo o que está acontecendo. Parece que o que está acontecendo é um tipo de genocídio silencioso. Esses fatos também nos mostram a reação da cultura de elite dos EUA, uma cultura em que estamos inseridos. Eles indicam que não sabemos exatamente o que vai acontecer, mas que existem planos sendo feitos e programas implementados que podem levar à morte de vários milhões de pessoas nas próximas semanas... bastante casualmente, sem direito a comentário ou reflexões; é algo tipo normal, aqui e em boa parte da Europa. Não no resto do mundo. Na verdade, nem mesmo na maior parte da Europa. Assim, se vocês lerem os jornais irlandeses ou os jornais escoceses... tão próximos, as reações variam enormemente. Bom, isso é o que está acontecendo nesse exato minuto. O que está acontecendo está sob nosso controle. Podemos fazer bastante para mudar o que está acontecendo. E é basicamente isso.

Discutamos agora uma questão um pouco mais abstrata, esquecendo por uns instantes que estamos vivenciando íncolumes a matança de 3 ou 4 milhões de pessoas. Voltemos à questão do evento histórico que ocorreu no dia 11 de setembro. Como eu disse, acho que é assim. Foi um evento histórico. Não, infelizmente, por conta de sua escala, desagradável até em pensar. Entretanto, em termos da escala, ele não é assim tão incomum. Eu disse que é o pior... provavelmente o pior dos piores crimes contra a humanidade. E isso pode ser verdade. Mas há crimes terroristas que são mais extremos, infelizmente. Ainda assim, é um evento histórico porque houve uma mudança. A mudança foi a direção para a qual as armas estavam apontadas. Isso é novo. Radicalmente novo. Vejamos a história dos EUA.

A última vez que o território nacional dos EUA foi atacado ou ameaçado foi quando os britânicos ataram fogo em Washington em 1814. Houve vários outros casos... É comum citarem Pearl Harbor, mas essa analogia não é muito boa. Os japoneses bombardearam bases militares em duas colônias norte-americanas, e não o território nacional; colônias que foram tomadas de seus habitantes naturais de uma forma nada simpática. Essa é a primeira vez que o território americano foi atacado em larga escala. Pode-se até encontrar exemplos menores; mas esse ataque é único.

Durante os últimos 200 anos, nós, os EUA, despojamos, ou invariavelmente exterminamos a população indígena local - isso significa muitos milhões de pessoas, conquistamos a metade do México, depedramos a região da América Central e Caribenha, algumas vezes além, conquistamos o Havaí e as Filipinas, matando vários 100.000 filipinos no processo. Desde a Segunda Grande Guerra, os EUA têm extendido seus domínios ao redor do mundo de uma maneira que eu não preciso descrever. Mas sempre matando alguém, as lutas sempre foram em outros lugares. Não aqui. Não em território nacional.

No caso da Europa, a mudança é ainda mais dramática porque sua história é ainda mais horrível que a nossa. Nós somos basicamente um produto da Europa. Por centenas de anos, a Europa tem dizimado povos em todo o mundo. Foi desse modo que eles conquistaram o mundo; não foi dando doce a crianças. Durante esse período, a Europa de fato sofreu com guerras sangrentas, mas uma guerra em que assassinos europeus se matavam mutuamente. O principal esporte da Europa durante centenas de anos foi o genocídio. A única razão pela qual tal esporte saiu de moda em 1945 foi... não teve nada a ver com democracia ou paz ou outra noção similar. Tinha a ver com o fato que todo mundo entendeu que da próxima vez que jogassem esse jogo, seria o fim do mundo. Porque os europeus, e mesmo os americanos, tinham desenvolvido armas de destruição tão potentes que aquele jogo tinha mesmo de ser descartado. E esses fatos são mais antigos do que pensamos. No Século XVII, cerca de 40% da população da Alemanha foi aniquilada em apenas uma guerra.

Mas durante todo esse período de assasinatos sangrentos, tudo se deu assim: europeus matando uns aos outros, e europeus matando povos fora da Europa. O Congo não atacou a Bélgica, a Índia não atacou a Inglaterra, a Algeria não atacou a França. É uniforme. Há algumas pequenas exceções, mas bastante insignificantes em escala, certamente invisivel na escala do que a Europa e os EUA têm feito no resto do mundo. Essa é a primeira mudança. A primeira vez que as armas foram apontadas para o lado oposto. E na minha opinião essa é provavelmente a razão pela qual estamos vendo reações tão divergentes nos dois lados do Mar Irlandês. Tenho notado isso em muitas entrevistas em ambos os lados. O mundo pode parecer bastante diferente, dependendo de que lado você está: dos que estão com o chicote ou dos que estão apanhando por centenas de anos. Muito diferente. Desse modo, eu penso que o choque e a surpresa na Europa e nos EUA são bastante compreensíveis. É um evento histórico, apesar de não sê-lo em escala, mas em algo diferente. E essa é a razão pela qual o resto do mundo... a maior parte do resto do mundo olha para esse evento de maneira tão diferenciada. Não que não simpatizem com as vítimas das atrocidades ou estejam horrorizadas com elas, isso é quase uniforme, mas vendo os fatos de uma perspectiva diferente. Algo que deveríamos tentar entender.

Bom, vamos agora para a terceira questão, "o que é a guerra contra o terrorismo?" e uma outra questão relevante: "o que é terrorismo?" A guerra contra o terrorismo tem sido descrita como uma batalha contra uma praga, um câncer que está sendo espalhado por um povo bárbaro, por "oponentes inescrupulosos da civilização". Esse é um sentimento que eu compartilho. As palavras que estou citando, no entanto, são de 20 anos atrás. São as palavras do presidente Reagan e de sua Secretaria do Estado. A administração Reagan chegou ao poder há 20 anos declarando que o ponto central de sua política internacional seria a guerra contra o terrorismo internacional. Essa mesma administração começou sua empreitada contra a praga disseminada por openentes inescrupulosos da civilização criando uma rede de terrorismo internacional extraordinária, totalmente sem precedentes em escala, que foi responsável por atrocidades em massa por todo o mundo. Não vou entrar em detalhes acerca disso. Vocês estão todos cientes disso; tenho certeza que aprenderam tudo direitinho na escola. [platéia ri]

Mas vou mencionar um caso que é totalmente incontroverso, de modo que não precisemos sequer arguir sobre a validade dele, que não chega a ser de modo nenhum o mais extremo, mas sem dúvida incontroverso. Ele é inconroverso por conta dos julgamentos das maiores autoridades internacionais do Corte Internacional de Justiça, a Corte Mundial, e do Conselho de Segurança da ONU. Então esse caso é incontroverso, pelo menos para pessoas que têm um mínimo de respeito por leis internacionais, direitos humanos, justiça e coisas assim. E agora vou propor a vocês uma tarefa de casa. Vocês podem ter uma estimativa do tamanho da categoria desse caso se simplesmente fizerem uma pesquisa da quantidade de vezes que esse caso incontroverso tem sido citado nos últimos dias. E é um caso particularmente relevante, não somente porque é incontroverso, mas porque oferece um precedente de como um estado coberto por leis internacionais trataria... de fato tratou o terrorismo internacional, o que é incontroverso. E esse caso foi ainda mais extremo que os eventos de 11 de setembro. Estou falando da guerra americana de Reagan contra a Nicarágua, que deixou dezenas de milhares de pessoas mortas, o país arruinado, talvez até impossível de se reerguer.

A Nicarágua respondeu a esses ataques. Mas não lançando bombas em Washington. A resposta foi levar o caso à Corte Mundial; não tiveram nenhum problema em apresentar evidências. A Corte Mundial aceitou o caso, julgou em favor da Nicarágua e condenou os EUA pelo "uso ilegal de força", o que é um outro nome para terrorismo internacional, ordenou que os EUA parassem o crime e que pagassem os danos que causaram. Os EUA obviamente desconsideraram a corte com total desprezo e anunciou que não aceitaria ser julgada por ela daí por diante. A Nicarágua então recorreu ao Conselho de Segurança da ONU, que demandou todos os Estados a considerarem as leis internacionais. Nenhum estado em particular foi mencionado, mas todos sabiam a que estado a ONU se referia. Os EUA desconsideraram a resolução. Os EUA são agora o único país que não apenas foi condenado pela Corte Mundial por terrorismo internacional, mas também desconsiderou uma resolução do Conselho de Segurança ordenando que todos os estados devem obedecer as leis internacionais. A Nicarágua foi então para a Assembléia Geral onde tecnicamente as resoluções não podem ser desconsideradas, mas um voto negativo dos EUA acarretaria na desconsideração. A resolução da Assembléia Geral foi basicamente a mesma, opondo-se a ela apenas os EUA, Israel e El Salvador. No ano seguinte, os EUA puderam contar somente com Israel na opisição, de modo que dois votos se opuseram à observação da lei internacional. Naquele ponto, não havia mais nada que a Nicarágua pudesse fazer dentro da lei. O país havia tentado todas as medidas possíveis. Medidas que não funcionam num mundo gerido pela força.

Esse caso é incontroverso, mas não é de modo nenhum o mais extremo. Ganharíamos um conhecimento sem par acerca de nossa cultura e sociedade e acerca do que está acontecendo agora se nos perguntássemos "o quanto sabemos acerca disso? o quanto falamos sobre isso? o quanto aprendemos sobre essas coisas na escola? o quanto tais assuntos ocupam a primeira página dos jornais?" E isso é apenas o começo. A resposta dos EUA à Corte Mundial e ao Conselho de Segurança foi a imediata organização de uma guerra. Incidentalmente, essa era uma guerra que envolvia duas partes. Os termos dessa guerra também mudaram. Pela primeira vez houve ordens oficiais... ordens oficiais ao exército terrorista para atacar o que chamaram "soft targets", ou alvos compostos por civis sem defesa, e para manterem-se afastados do exército da Nicarágua. Eles puderam fazer isso porque os EUA tinha controle total do ar por sobre a Nicarágua e o exército mercenário foi armado com equipamentos de comunicação avançados. Não era um exército de guerrilheiros, no sentido normal da expressão e podiam receber instruções acerca do posicionamento das forçar armadas da Nicarágua, de forma que podiam atacar comunidades agriculturais, clínicas de saúde, etc. "Soft targets" que não acarretavam em qualquer tipo de punição. Essas ordens foram ordens oficiais.

Qual foi a reação nos EUA? Foi sabida. Houve uma reação sobre esses acontecimentos. A medida foi considerada como sensata pela opinião de liberais da esquerda. Michael Kinsley, representante da esquerda na discussão, escreveu um artigo em que diz que não devíamos criticar a medida de forma tão leviana como o Human Rights Watch tinha acabado de fazer. Ele disse que uma "medida sensata" tem de "levar em conta o teste de análise de custo-benefício" -- isto é, estou citando agora, que é a análise da "quantidade de sangue e sofrimento que decorrerá, e a probabilidade de que a democracia vencerá no final das contas". Democracia tal como os EUA entendem o termo, que é geograficamente ilustrado nos países ao redor. Notem que é axiomático o fato de que os EUA, as elites americanas, é que possuem o direito de conduzirem tal análise e de levarem a cabo tais medidas se os testes mostrarem que assim deve ser. Os testes foram de fato positivos. Funcionou. Quando a Nicarágua finalmente sucumbiu aos ataques super-poderosos, os comentaristas aberta e alegramente comemoraram o sucesso dos métodos que foram adotados e descreveram-nos com fidelidade. Eu vou citar a revista Time apenas como um exemplo. Eles comemoraram os métodos adotados "para acabar com a economia e posicionar-se contra uma guerra longa e mortal que duraria até que os nativos tirassem o governo do poder pelas próprias mãos", com um custo para os EUA que são "mínimos", deixando a vítima "com pontes estraçalhadas, estações de energia sabotadas, e fazendas arruinadas", e desse modo proporcionando ao candidato dos EUA "uma causa ganha": terminando assim com o "empobrecimento do povo da Nicarágua." O New York Times publicou um artigo sobre o assunto com o seguinte título "Unidos na Alegria".

Essa é a cultura em que vivemos e ela nos revela vários fatos. Um é o fato de que o terrirismo funciona. Ele não falha. Funciona. Violência geralmente funciona. Essa é a história do mundo. Ademais, é um erro analítico sérip dizer, como usualmente é dito, que o terrorismo é a arma dos fracos. Como outras formas de violência, o terrorismo é primariamente a arma dos fortes, majoritariamente, de fato. É considerado ser a arma dos fracos porque os fortes também controlam os sistemas doutrinais e o terrorismo que fazem não é considerado como tal. Isso é quase universal. Não sei de nenhuma exceção histórica, até os piores assassinos de massa vêem o mundo assim. Consideremos os nazistas. Eles não estavam fazendo terrorismo na Europa ocupada. Estavam protegendo a população local do terrorismo dos partidários. E como outros movimentos de resistência, havia terrorismo. Os nazistas estavam lutando contra o terror. Ademais, os EUA essencialmente concordaram com isso. Depois da guerra, as forças armadas dos EUA fizeram estudos das operações anti-terror dos nazistas na Europa. Primeiramento devo dizer que os EUA se apossaram desse conhecimento e começaram a colocá-lo em prática, freqüentemente contra os mesmos alvos, a antiga resistência. Mas os militares também estudaram os métodos nazistas, publicando estudos interessantes, algumas vezes críticos, porque muitos dos métodos não eram corretamente utilizados; então uma análise crítica: não fizeram isso bem-feito, fizeram aquilo bem-feito. Esses métodos todavia, com o conselho dos oficiais do Wermacht que foram trazidos paros EUA, tornaram-se o manual de contra-insurgência, de anti-terror, de conflito de baixa intensidade, como são chamados. E esses são os manuais e os procedimentos que estão sendo usados. Então não é apenas o fato que os nazistas fizeram o que fizeram, mas que suas ações foram consideradas pelos líderes da civilação ocidental - isto é, nós - a coisa certa a fazer. E então tratamos de fazê-los nós mesmos. O terrorismo não é a arma dos fracos. É a arma daqueles que estão contra nós, quem quer que sejamos. E se puderem achar uma exceção histórica para isso, ficarei interessado em conhecer.

Bem, uma indicação interessante da natureza de nossa cultura, ou alta cultura, é o meio como isso tudo é considerado. Um desses meios é a eliminação de informação. Assim ninguém jamais ouviu falar nisso. E o poder da propaganda e doutrina americanas é tamanho que mesmo entre as vítimas esses fatos são quase desconhecidos. Quero dizer, quando se fala acerca disso para as pessoas na Argentina, é preciso lembrá-los. Ah, sim, isso aconteceu, nós esquecemos disso. A informação é profundamente eliminada. As conseqüências do monopólio da violência podem ser bastante poderosas em termos ideológicos e em outros termos.

Bom, uma aspecto luminar de nossa própria atitude no que diz respeito ao terrorismo é a reação à idéia de que a Nicarágua tinha o direito de se defender. Na verdade, eu investiguei esse ponto em detalhe com buscas em bancos de dados e esse tipo de coisa. A idéia de que a Nicarágua tivesse o direito de se defendr era considerada ultrajante. Não há absolutamente nada nos comentários da mídia em evidência indicando que a Nicarágua podia ter tal direito. E esse fato foi explorado pela administração Reagan e sua propaganda de uma maneira bastante interessante. Aqueles entre vocês que viveram esse período lembrarão que eles periodicamente lançavam rumores que a Nicarágua estava recebendo jatos MIG da Russia. Na época, os gaviões e as pombas se opuseram. Os gaviões diziam "ok, vamos bombardeá-los". As pombas diziam "peraí, vamos ver primeiro se os rumores são verdadeiros; se os rumores forem verdadeiros, então podemos bombardeá-los, porque eles são uma ameaça aos EUA". Que interessante! De repente eles estavam recebendo MIGs. Bem, eles bem que tentaram comprar jatos em países europeus, mas os EUA pressionaram os seus aliados de forma que eles não enviassem à Nicarágua meios de proteção, porque queriam que eles acabassem indo ter com os russos. Isso era bom para propósitos propagandísticos. Então eles se tornaram uma ameaça aos EUA. Lembrem-se, eles estavam a apenas dois dias de marcha de Harlingen, no Texas. Nós até mesmo declaramos estado de emergência nacional em 1985 para proteger o país contra a ameaça da Nicarágua. Por que eles iriam querer jatos? Bem, pelas razões que já mencionei. Os EUA tinham total controle sob o espaço aéreo deles, estavam sobrevoando-o e usando-o para fornecer instruções à milica terrorista de forma a permitir que eles atacassem "soft targets" sem que precisassem ter de enfrentar as forças armadas do país. Todos sabiam que essa era a razão. Eles não vão usar os seus jatos para nada além disso. Mas a idéia de que a Nicarágua pudesse defender seu espaço aé;reo contra ataques super-poderosos que estavam direcionando forças terroristas para atacar alvos civis indefensáveis, isso foi considerado nos EUA como ultrajante, e de maneira bastante uniforme. As exceções são tão poucas que eu poderia listá-las. Eu não quero sugerir que vocês acreditem piamente em mim. Dêem uma olhada. Isso inclue nossos próprios políticos, incidentalmente.

Outro exemplo de como consideramos o terroriamo está acontecendo nesse exato minuto. Os EUA acabaram de designar um embaixador para a ONU que liderará a guerra contra o terrorismo. Quem é ele? Bem, seu nome é John Negroponte. Ele foi o embaixador americano no estado feudal, que é exatamente isso, de Honduras no início dos anos 80. Houve certa confusão acerca do fato de que ele devia estar sabendo, e certamente esse era o caso, da matança em larga escala e outras atrocidades que estavam sendo feitas pelas forças de segurança em Honduras, forças estas que estavamos apoiando. Mas isso é apenas um detalhe. Como pro-cônsul de Honduras, como ele era chamado lá, ele eta o supervisor local da guerra terrorista baseada em Honduras, algo pelo qual o seu país tinha sido condenado pela Corte Mundial e também pelo Conselho de Segurança. E ele acabou de ser designado como embaixador da ONU para liderar uma guerra contra o terrorismo. Um outro experimento que vocês podem fazer é checar para ver qual foi a reação a respeito disso. Bom, eu direi o que vocês vão achar, mas procurem assim mesmo. Isso nos diz um bocado acerca da guerra contra o terrorismo e um bocado acerca de nós mesmos.

Depois que os EUA tomaram o país novamente sob as condições que foram tão bem ilustradas na imprensa, o país ficou bastante destruído nos anos 80, mas tem ido à bancarrota desde então em todos os aspectos. Economicamente ele tem decaído significativamente desde que os EUA o dominou, democraticamente e em todos os demais aspectos. É agora o segundo país mais pobre no hemisfério. Devo dizer... Não vou falar a respeito disso, mas eu mencionei que eu falei sobre a Nicarágua porque esse é um caso incontroverso. Se vocês olharem para os outros países naquela região, o terrorismo foi ali muito mais extremo e ele está diretamente relacionado a Washington e isso não é de maneira nenhuma tudo.

Mas isso estava acontecendo em outras partes do mundo também; considere a África. Durante os anos Reagan, os ataques sul-africanos contra os países vizinhos, que foram financiados pelos EUA e a Grã-Bretanha, mataram cerca de um milhão e meio de pessoas e deixaram um prejuízo de 60 bilhões de dólares e países completamente destruídos. E se formos ao redor do mundo, encontraremos mais exemplos.

Agora essa foi a primeira guerra contra o terrorismo sobre a qual acabei de dar alguns pequenos exemplos. É de se esperar que prestemos atenção a eles? Ou talvez achar que eles possam ser relevantes? Afinal eles não são exemplos da história antiga. Bem, evidentimente não o são se vocês levarem em consideração os tópicos correntes da discussão sobre a guerra contra o terrorismo que tem sido o principal foco de atenção nos últimos dias.

Eu mencionei que a Nicarágua se tornou o segundo país mais pobre do hemisfero. Qual é o mais pobre deles? Bem, é claro que é o Haiti, que também foi vítima da maior parte das intervenções americanas no século XX. Deixamos aquele lugar totalmente destruído. É o país mais pobre. A Nicarágua é o segundo na escala das intervenções dos EUA durante o séc. XX. É o segundo mais pobre. Na verdade, essa posição está sendo disputada com a Guatemala. Muda a cada ano ou dois. Também existe uma disputa acerca de que país foi a pior vítima das intervenções norte-americanas. Acho que esperam que pensemos que tudo isso foi algum tipo de acidente. Que taisfatos nada tem a ver com o que ocorreu na história. Talvez.

O país que mais violou os direitos humanos na décade de 90 foi a Colómbia, sem sombra de dúvida. Esse país foi também o que mais recebeu apoio militar dos EUA durante esse período, mantendo desse modo o terrorismo e a violação dos direitos humanos. Em 1999, a Colómbia foi substituída pela Turquia na escala de maior destinatário de armas americanas no mundo inteiro, isso excluindo Israel e Egito, que estão numa categoria separada. E isso nos diz bastante acerca da guerra contra o terrorismo.

Por que a Turquia estava recebendo tamanha quantidade de armas norte-americanas? Bem, se vocês observarem o fluxo de armas dos EUA na Turquia, vão notar que a Turquia sempre recebeu armas norte-americanas. É um lugar estratégico, membro da OTAN, etc. Mas o fluxo de armas para a Turquia cresceu significamente em 1984. Não teve nada a ver com a guerra fria. Os russos estavam sendo derrotados. Tal fluxo manteve-se alto entre 1984 a 1999. Quando ele diminuiu, foi substituído pela Colómbia. O que aconteceu entre 1984 e 1999? Bem, em 1984 a Turquia iniciou uma guerra terrorista contra os curdos no sudeste da Turquia. E esse foi exatamente o momento em que a ajuda dos EUA alcançaram o topo, ajuda militar. E não foram apenas pistolas. Foram jatos, tanques, treino militar, etc. Tal ajuda manteve-se alta à medida que as atrocidades também cresciam no decorrer dos anos 90. O ano em que o maior apoio se deu foi 1997. Em 1997, a ajuda militar dos EUA à Turquia foi maior do que no período de 1950 e 1983, ou seja, durante a guerra fria, o que é uma indicação do quanto a guerra fria influenciou as medidas. E os resultados foram impressionantes. Isso acarretou num total de 2-3 milhões de refugiados. Uma das piores limpezas étnicas do final da década de 90. Dezenas de milhares de pessoas mortas, 3500 vilas e cidades destruídas, muito mais do que em Kosovo. E os EUA eram responsáveis pela manutenção de 80% das armas, aumentando esse número na proporção do aumento das atrocidades, que alcançou o seu cume em 1997. O apoio começou a declinar em 1999 porque, uma vez mais, o terrorismo funciona geralmente assim quando é liderado por seus agentes principais, majoritariamente os poderosos. Desse modo, em 1999, a terror turco, chamado obviamente anti-terror - mas, como eu já disse, isso é universal -, funcionou. Então a Turquia foi substituída pela Colómbia, que ainda não tivera sucesso em sua guerra terrorista. E desse modo tiveram de alcançar a primeira posição na escala de recipientes de armas norte-americanas.

Bem, o que faz tudo isso particularmente impressionante é que esses acontecimentos estavam tomando lugar bem no meio de uma grande avalanche de auto-congratulação por parte dos intelectuais ocidentais que provavelmente não tem par na história. Quero dizer, vocês todos devem lembrar disso. Foi apenas há alguns anos atrás. Grande auto-adulação sobre como pela primeira vez na história nós fomos tão magnificentes; que nós estamos nos posicionando a favor de princípios e valores; dedicados à anulação da falta de humanidade em toda a parte do mundo na nova era disso-e-daquilo, e assim por diante. E nós certamente não podemos tolerar atrocidades nos países fronteiriços da OTAN. Esse tipo de coisa foi repetido várias vezes. Apenas dentro das fronteiras da OTAN é que podemos não somente tolerar atrocidades bem piores, mas também contribuir com elas. Outra investigação acerca da civilização ocidental e nossa própria é quão freqüentemente tal assunto tem sido levado em consideração? Tentem investigar. Não vou repetir. Mas é instrutivo. É um ato bastante impressionante para um sistema de propaganda numa sociedade livre. É bastante interessante. Eu não acredito que se pudesse fazer isso num estado totalitário.

E a Turquia está bastante grata. Apenas há alguns dias atrás, o primeiro ministro Ecevit anunciou que a Turquia se uniria à guerra contra o terrorismo, bastante entusiasticamente, bem mais que outros países. Na verdade, ele disse que seu país contribuiria com tropas, coisa que nenhum outro país estaria ansioso por fazer. E ele explicou porquê. Ele disse: nós devemos gratidão aos EUA porque foram os EUA o único país que contribuiu tão significativamente para nossa, em suas palavras, "guerra contra o terrorismo", isto é, para a nossa própria limpreza étnica massiva e atrocidades e terrorismo. Outros países ajudaram um pouco, mas ficaram na retaguarda. Os EUA, no entanto, contribuíram entusiastica e decisivamente e conseguiram fazer isso por conta do silêncio - pode ser a palavra certa - das classes educadas da população que poderiam facilmente saber os detalhes desse caso. É um país livre, no final das contas. Você pode ler relatos de direitos humanos. Você pode ler todo tipo de coisa. Mas escolhemos contribuir com as atrocidades e a Turquia está bastante feliz, eles nos devem por isso e desse modo contrbuirão com tropas exatamente como o fizeram na guerra da Sérvia. A Turquia foi bastante elogiada por usar os F-16 que demos a eles para bombardear a Sérvia, exatamente como tinham feito com sua própria população até o momento em que foram bem-sucedidos em eliminar o terrorismo interno - como eles assim denominaram. E como é comum, como sempre ocorre, resistência não inclui terrorismo. É uma verdade na Revolução Americana. É uma verdade em cada um dos casos que conheço. Assim como é verdade que aqueles que possuem um monopólio de violência falam sobre si próprios como se estivessem lutando contra o terrorismo.

Isso é de fato bastante impressionante e tem a ver com a coalisão que está sendo organzada para lutar na guerra contra o terrorismo. E é bastante interessante ver como tal coalisão está sendo descrita. Então dêem uma olhada no jornal Christian Science Monitor dessa manhã. Esse é um bom jornal. Um dos melhores jornais internacionais, com cobertura real do mundo. A história principal, a que está na primeira página, é sobre como os EUA, vocês sabem, as pessoas costumavam não gostar dos EUA, mas agora estão começando a respeitar esse país, e elas estão bastante felizes com a maneira pela qual os EUA estão lidando com essa guerra contra o terrorismo. E o principal exemplo, bem, na verdade o único exemplo sério, os outros são apenas piadas, é a Algéria. Acontece que a Algéria está bastante entusiasmada com a guerra dos EUA contra o terrorismo. A pessoa que escreveu o artigo é um expert sobre assuntos da África. Ele deve saber que a Algéria é um dos estados mais terroristas no mundo e tem promovido atentados terroristas terríveis contra a sua própria população nos últimos anos, na verdade. Por algum tempo, esses fatos eram encobertos. Mas foram finalmente expostos em França por desertores do exército da Algéria. Isso já se tornou público lá e na Inglaterra. Aqui, no entanto, ainda estamos orgulhosos porque um dos piores estados terroristas do mundo está agora entusiasticamente cumprimentando os EUA por sua guerra contra o terrorismo, e mesmo festejando o fato de ser os EUA o país a liderar tal guerra. Isso mostra como estamos nos tornando popular.

E se vocês olharem para a coalisão que está sendo formada contra o terrorismo, isso vai revelar bastante mais coisas. Um dos membros principais de tal coalisão é a Rússia, que está contente por ter os EUA como aliados em sua própria guerra terrorista assassina na Chechênia. A China também está se unindo entusiasticamente. Lá também eles estão contentes por terem o apoio nas atrocidades que estão cometendo na região oeste do país contra os que são denominados muçulmanos sectários. A Turquia, como já mencionei, está bastante contente com a guerra contra o terror. Eles são especialistas. A Algéria, a Indonésia, estão todos contentes por ter ainda mais apoio dos EUA pelas atrocidades que estão cometendo em Ache e em outros lugares. Podemos considerar em detalhe cada membro da lista; a lista de estados que se uniram na coalisão contra o terror é bastante impressionante. Eles têm uma característica em comum. Eles estão certamente entre os maiores estados terroristas do mundo. E eles estão sendo liderados pelo campeão de todos.

Bom, isso nos leva à questão "o que é terrorismo?" Eu tenho considerado que nós todos entendemos o conceito de terrorismo. Bem, o que é terrorismo então? Bom, existem respostas fáceis para essa questão. Há uma definição oficial. Você pode encontrá-la no código dos EUA ou em manuais militares dos EUA. Uma breve sentença tirada de um manual militar dos EUA é bastante justa: terrorismo é o uso calculado da violência ou a ameaça de violência para se alcançar objetivos de ordem política ou religiosa através do uso de intimidação, coerção ou da perpetração do medo. Isso é terrorismo. É uma definição bastante justa. Eu considero razoável acitá-la. O problema é que ela não pode ser aceitada, porque se você o faz, conseqüências erradas podem resultar. Por exemplo, todas as conseqüências que acabei de citar. Há uma grande tentativa nesse instante na ONU de se tentar desenvolver um tratado compreensivo sobre o terrorismo. Quando Kofi Annan recebeu o prêmio Nobel há pouco tempo, vocês devem ter percebido que foi dito que ele teria falado que devíamos parar de perdermos mais tempo no tocante a isso e agirmos o quanto antes.

Mas há um problema. Se usarmos a definição oficial de terrorismo no tratado compreensivo, teremos resultados completamente errados. Desse modo, isso não pode ser feito. Na verdade, é ainda pior que isso. Se vocês derem uma olhadinha na definição de Guerrilha de Baixa Intensidade, que é a medida oficial dos EUA, você verão que ela é uma paráfrase bastante próxima do que acabei de ler. Na verdade, Guerrilha de Baixa Intensidade é apenas um outro nome para terrorismo. Essa é a razão pela qual todos os países, pelo que sei, chamam qualquer ato terrível que estejam promulgando "anti-terrorismo". Nós chamamos Anti-Insurreição, ou Conflito de Baixa Intensidade. Então esse é um problema sério. Você não pode usar as definições atuais. É preciso cuidadosamente achar uma definição que não acarrete em todas as possíveis conseqüências erradas.

Há outros problemas. Alguns deles vieram à tona em dezembro de 1987, no cume da primeira guerra contra o terrorismo, isto é, quando o furor contra a praga estava em seu apogeu. A Assembléia Geral da ONU aprovou uma resolução bastante vigorosa contra o terrorismo, condenando a praga nos termos mais vigorosos possíveis, pedindo a todos os países para lutarem contra ela de todas as formas possíveis. Tal resolução foi aprovada unanimamente. Um país se absteve: Honduras. Por que os EUA e Israel votariam contra uma resolução contra o terrorismo em seus termos mais vigorosos, na verdade nos mesmos termos usados na administração Reagan? Bem, há uma razão. Há um parágrafo nessa longa resolução que diz que nada nessa resolução infringe nos direitos das pessoas lutando contra regimes racistas e colonialistas ou contra ocupações militares estrangeiras que queiram continuar com sua resistência com o apoio de outros, outros estados, estados estrangeiros em favor de suas causas justas. Bem, os EUA e Israel não podiam aceitar isso. A razão principal pela qual não podiam aceitar isso naquela época era a África do Sul. A Áfricado Sul era um aliado, oficialmente. Havia uma força terrorista na África do Sul. Era chamada o Congresso Africano Nacional. Ela era uma força terrorista oficial. A África do Sul era um aliado e nós certamente não podíamos dar apoio a ações de um grupo terrorista contra um regime racista. Isso seria impossível.

E obviamente há outra questão. Os territórios ocupados de Israel, indo já para o seu 35 ano. Apoiados principalmente pelos EUA, que já há 30 anos tentam se opor a um acordo diplomático - e ainda o fazem. Há outro exemplo naquela mesma época. Israel estavao cupando o sul do Líbano e estava enfrentando o combate do que os EUA chamam uma força terrorista, Hizbullah, que de fato foram bem sucedidos em tirar Israel do Líbano. E não podemos permitir que ninguém lute contra uma ocupação militar quando ela é uma das que damos apoio, desse modo, os EUA e Israel tiveram de votar contra a resolução da ONU contra o terrorismo. E eu já mencionei antes que um voto dos EUA contra alguma coisa... significa necessariamente um veto. O que é apenas metade da história. Os EUA também vetam fatosda história. Assim, nada disso foi relatado, e nenhum desses incidentes jamais apareceram nos anais sobre o terrorismo. Se vocês derem uma olhada nos trabalhos acadêmicos sobre o terrorismo, observarão que nada do que acabei de dizer aparece aí. A razão para isso é que as pessoas erradasestão segurando as armas. Precisamos levar mais a sério as definições e os trabalhos acadêmicos de forma a chegarmos a conclusões mais acertadas; de outro modo, não teremos pesquisar nem jornalismo honoráveis. Bem, esses são alguns problemas que estão impedindo o esforço de se desenvolver um tratado compreensivo contra o terrorismo. Talvez devessemos ter uma conferência acadêmica ou algo assim para tentarmos ver a possibilidade de se propor um caminho de definirmos o terrorismo de forma que os resultados sejam corretos, e não errados. Isso não será fácil.

Bom, vamos agora voltar à quarta questão: "quais são as origens dos crimes de 11 de setembro?" Aqui precisamos fazer uma distinção entre duas categorias que não devem ser consideradas em conjunto. Uma delas é no que respeita aos verdadeiros agentes do crime, a outra tem a ver com um tipo de reseva de ao menos simpatia, e algumas vezes apoio que eles recebem até mesmo entre as pessoas que se opoem aos criminosos e seus atos. E essas duas coisas são coisas bastante diferentes.

Bem, no que diz respeito aos responsáveis, de certo modo ainda não estamos muito certos. Os EUA não estão conseguindo - ou não estão querendo - oferecer qualquer evidência, qualquer evidência que faça sentido. Houve um tipo de jogo há algumas semanas atrás quando Tony Blair foi instruído a apresentar uma evidência. Eu não sei exatamente qual foi o propósito disso. Talvez para fazer parecer que os EUA estavam guardando algum tipo de evidência secreta que não podiam revelar ou para fazer com que Tony Blair pudesse justificar atos Churchillianos, ou algo assim. Qualquer que tenham sido as intenções das relações públicas, ele ofereceu uma documentação que foi considerada em círculos sérios tão absurda que ela chegou sequer a ser menconada. Desse modo, o Wall Street Journal, por exemplo, um dos jornais mais sérios que temos, publicou um artigo bastante pequeno, creio que na página 12, em que observam que não existem muitas evidências e então citam um alto oficial dos EUA dizendo que não importava se existissem evidências ou não, pois eles o fariam o que tivessem de fazer com ou sem elas. Então para que se importar com evidências? As imprensas mais ideológicas, como o New York Times e outros jornais, trouxeram manchetes enormes em primeira página. Mas a reação do Wall Street Journal foi razoável, e se vocês derem uma olhadinha na chamada "evidência", vocês saberão porquê. Mas consideremos que seja verdade. É realmente impressionante para mim como foram fracas as evidências. Eu cheguei mesmo a pensar que se podia fazer um melhor trabalho sem um serviço de inteligência [platéia ri]. Na verdade, considerem que elas apareceram depois de semanas da mais intensiva investigação na história de todo serviço de inteligência do mundo ocidental na tentativa de se juntar evidências. E foi um caso prima-facie. Foi um caso fortíssimo, mesmo antes de se ter algo em mãos. E acabou exatamente como tinha começado, um caso prima-facie. Então consideremos que seja verdade. Então consideremos que - pareceu óbvio desde o primeiro dia, e ainda parece - os verdadeiros responsáveis são originários do islamismo radical, aqui chamado, redes fundamentalistas das quais a rede de bin Laden é sem dúvida parte significante. Se eles estavam envolvidos ou não ninguém sabe. Isso realmente não vem ao caso.

São essas redes que estão por trás de tudo. Bem, de onde vieram elas? Todos sabemos a resposta. Ninguém sabe melhor sobre isso que a CIA, porque foi essa organização que as organizou e as financiou por bastante tempo. Elas vieram à tona na década de 80, apoiadas pela CIA e por seus aliados: o Paquistão, a Grã-Bretanha, a França, a Arábia Saudita, o Egito e a China estavam todos envolvidos. Eles podiam até estar envolvidos um pouco antes, talvez por volta de 1978. A idéia foi tentar atormentar os russos, o inimigo em comum. De acordo com o Conselheiro de Segurança Nacional do presidente Carter, Zbigniew Brzezinski, os EUA se envolveram nisso em meados de 1979. Vocês se lembram, apenas para colocar as datas nos eixos, que os russos invadiram o Afeganistão em dezembro de 1979? Ok. De acordo com Zbigniew Brzezinski, o apoio dos EUA pela guerra mojahedin contra o governo começou seis meses antes. Ele é bastante orgulhoso desse fato. Ele diz que nós levamos os Russos para, em suas próprias palavras, uma armadilha afegã, ao apoiarmos o mojahedin, fazendo-os invadirem, fazendo-os caírem na armadilha. De modo que pudéssemos então desenvolver tar exército mercenário. Não um pequeno exército, talvez 100.000 homens ou algo assim, juntando os maiores assassinos que podiam achar, que eram islamistas radicais fanáticos pelos aredores da África do Norte, Arábia Saudita, onde quer que pudessem encontrá-los. Eles eram freqüentemente chamados os "afeganos", mas muitos deles, como bin Laden, não eram afegãos. Eles foram unidos pela CIA e seus comparsas de vários lugares. Se Zbigniew Brzezinski está dizendo a verdade ou não, não sei. Ele pode ter querido somente se auto-engrandecer, ele é, aparentemente, bastante orgulhoso dessa feita, sabendo incidentalmente quais seriam as conseqüências. Mas talvez seja verdade. Saberemos um dia se os documentos forem liberados. De qualquer maneira, essa é a percepção dele. Por volta de janeiro de 1980, não era sequer questionado o fato de estarem os EUA organizando os afeganos, essa força militar massiva, para tentar fazer o maior estrago com os russos. Foi algo legítimo para os afegãos lutar contra a invasão russa. Mas a intervenção dos EUA não estavam ajudando os afegãos. Na verdade, apenas ajudaram a destruir o país, e muito mais. Os afeganos forçaram por fim a derrota dos russos.

Ao mesmo tempo, as forças terroristas que a CIA estava organizando, armando e treinando estavam organizando seus próprios atos. Não era nenhum segredo. Um dos primeiros atos foi em 1981 quando eles assassinaram o pesidente do Egito, que foi um de seus criadores mais entusiasticos. Em 1983, uma bomba humana suicida - que podia ou não estar relacionado, é bastante nebuloso, inguém sabe - fez com que o exército militar dos EUA desertassem o Líbano. E os atos continuaram. Eles tinham seus próprios planos. Os EUA estavam felizes em poder mobilizá-los a favor de suas causas, mas ao mesmo tempo eles estavam organizando seus próprios planos. Eles foram bem claros acerca disso. Depois de 1980, quando os russos desistiram da invasão, eles simplesmente voltaram suas atenções para outros alvos. Desde então, têm lutado na Chechênia, no Oeste da China, na Bósnia, na Kashmira, no sudoeste da Ásia, na África do Norte, em toda a parte.

Estão nós dizendo apenas o que pensam. Os EUA querem silenciar o único canal de TV livre no mundo Árabe porque eles estão televisionando uma quantidade enorme de coisas, que vão dese Powell até Osama bin Laden. Desse modo, os EUA estão agora se juntando aos regimes repressivos do mundo árabe no sentido de calarem os que falam. Mas se você derem ouvido ao que bin Laden diz, verão que vale a pna. Há bastante entrevistas. E há muitas entrevistas lideradas por reporteres do ocidente, se você preferem não ouvir a voz dele, como as feitas por Robert Fisk e outros. E o que ele vem dizendo é bastante consistente por já há bastante tempo. Ele não é o único, mas talvez o mais eloqüente. Não é consistente apenas em relação ao tempo, mas sobretudo em relação às ações. Então há muitas razões para levá-lo a sério. O principal inimigo deles é o que chamam os regimes autoritários, brutais e opressivos do mundo árabe, e quando dizem isso, a resonância é sentida em muitas partes da região. Eles também querem defender substituí-los por governos islámicos. Aí é que perdem apoio do povo da região. Mas até então, as pessoas estão a seu favor. Pelo ponto de vista deles, até da Arábia Saudita - o estado fundamentalista mais extremo -, até o Talibão não é islâmico o suficiente para eles. Ok, naquele ponto, eles receberam muito pouco apoio, mas até aquele ponto, ele receberam bastante apoio. Eles também queriam defender os muçulmanos em outras regiões. Eles odeiam os russos enormemente, mas assim que os russos abandonaram o Afeganistão, eles pararam de cometer atos terroristas na Rússia, como vinham fazendo antes disso, com o apoio da CIA. Eles mudaram-se para a Chechênia. Mas ali estão, defendendo os muçulmanos contra a invasão russa. A mesma coisa que ocorre em todos os outros lugares que já mencionei. Do ponto de vista deles, estão defendendo os muçulmanos contra os inféis. E eles falam a respeito disso bastante claramente e isso é exatamente o que vêm fazendo.

Mas por que agora voltaram-se contra os EUA? Bom, isso tem a ver com o que chamam a invasão dos EUA na Arábia Saudita. Em 1990, os EUA estabeleceram bases militares permanentes na Arábia Saudita, o que, do ponto de vista deles, era algo comparável à invasão russa ao Afeganistão, sendo que a Arábia Saudita é um lugar ainda mais importante. É a terra dos pontos mais sagrados do mundo islâmico. E foi exatamente aí quando as atividades deles se voltaram contra os EUA. Se vocês lembram, em 1993 eles tentaram explodir o World Trade Center. Conseguiram apenas um pouco, mas não tudo, e isso era apenas um exemplo do que podia vir. Os planos eram explodir o prédio da ONU, a Holanda, o túnel Lincoln, o prédio do FBI. Eu acho que tinham outros alvos na lista. Bem, eles somente conseguiram realizar parte dos projetos, não ele por inteiro. Uma dos prisioneiros, finalmente, entre vários, era um clérigo egípcio que tinha entrado nos EUA - apesar da oposição do Serviço de Imigração - graças à CIA, que queria ajudar um de seus amigos. Umas semanas depois, ele estaria bombardeando o World Trade Center. E isso tem acontecido sempre. Não vou entrar em detalhes, mas isso, se querem entender melhor o quador, é algo consistente. É um quadro consistente.

E sobre a tal reserva de apoio? Bem, não é tão difícil entender o que isso seja. Uma das coisas boas que tem acontecido desde 11 de setembro é que alguns membros da imprensa e algumas discussões têm começado a se abrir para algumas dessas coisas. O melhor deles ao meu entender é o Wall Street Journal, que imediatamente começou a publicar, em poucos dias, reportagens sérias, buscando reportagens sérias sobre as razões pelas quais as pessoas da região, apesar de odiarem bin Laden e desprezarem o que quer que ele faça, apoiam-no de muitas maneiras e até consideram-no a consciência do Islã, como já se disse. Agora o Wall Street Journal e outros jornais não estão fazendo pesquisas de opinião pública. Eles estão pesquisando a opinião de seus amigos: banqueiros, profissionais, advogados internacionais, homens de negócio ligados aos EUA, pessoasque entrevistam em restaurantes McDonalds, que são restauranteselegantes lá, vestindo roupas americanas da hora. Essas são as pessoas que eles estão entrevistando, porque querem entender quais são as atitudes delas. E as atitudes delas são bem explícitas, bem claras de muitas maneiras no que concerne à mensagem de bin Laden e de outros. Eles estão bastante zangados com os EUA por conta do apoio que dão a regimes autoritários e brutais; a intervenção que fazem para impedir qualquer tipo de movimentação a favor da democracia; a intervenção que realizam para impedir o desenvolvimento economico; as medidas que acabam por devastar sociedades civis do Iraque e fortalecer Saddam Hussein; e eles lembram-se, mesmo que prefiramos não fazê-lo, que os EUA e a Grã-Bretanha ajudaram Saddam Hussein em suas piores atrocidades, o que inclui o ataque aos curdos; bin Laden sempre menciona isso. E eles sabem disso mesmo que não queiramos. E claro o apoio que dão à ocupação militar israelita que é severa e brutal. Ela estáagora completando 35 anos. Os EUA têm dado a maior parte doi apoio econômico, militar e diplomático para essa ocupação, e ainda o faz. E sabemos que eles não gostam disso. Particularmente quando esse fato é emparelhado com as medidas dos EUA contra o Iraque, contra as sociedades civis do Iraque, que estão sendo destruídas. Ok, essas são, no geral, as razões. E quando bin Laden dá essas razões, as pessoas a reconhecem como válidas e o apoiam.

Agora essa não é a forma como as pessoas aqui gostam de considerar o assunto, pelo menos as pessoas com educação formal, com opiniões liberais. Elas preferem a seguinte linha de raciocínio que tem estado na imprensa, na maior parte de liberais esquerdistas, incidentalmente. Eu não fiz até o momento nenhum estudo sério, mas acredito que a opinião da direita têm sido em geral mais honesta. Mas considerem o New York Times, por exemplo, que publicou um artigo do Ronald Steel, um intelectual liberal de esquerda. Ele se pergunta: "por que eles nos odeiam?". Esse artigo apareceu no mesmo dia em que o Wall Street Journal publicou a pesquisa de opinião que mostrava as razões pelas quais eles nos odeiam. Então ele afirma "eles nos odeiam porque somos os campeões do mundo no que concerne à nova ordem do capitalismo, individualismo, e democracia, o que deveria ser a norma em qualquer parte". Essa seria a razão pela qual eles nos odeiam. No mesmo dia em que o Wall Street Journal publica uma pesquisa com opiniões de banqueiros, profissionais, advogados internacionais que dizem "olhem, nós odiamos vocês porque vocês estão impedindo a democracia, estão impedindo o desenvolvimento econômico, estão dando apoio a regimes brutais e terroristas, e estão fazendo tudo isso nessa região". Alguns dias depois, Anthony Lewis explicou que os terroristas buscam apenas "niilismo apocalíptico", nada mais; e nada do que façamos importa. A única conseqüência de nossos atos, ele afirma, que poderia ser perigosa é que ela dificulta para a unificação dos árabes na coalização contra o terrorismo. Mas além disso, o que quer que fazemos é irrelevante.

Bom, vocês devem saber, pelo menos isso tem a vantagem de ser algo reconfortante. Isso nos faz sentirmo-nos bem: como somos bons. Nos possibilita desconsiderarmos as conseqüências de nossas ações. Tem alguns defeitos. Um é que está em total discordância com tudo o que sabemos. E outro defeito é que isso é uma justificativa perfeita para fazê-lo crer na validade de se iniciar um ciclo de violência. Se vocês querem, podem viver com a cabeça enterrada na areia e fingir que eles nos odeiam porque estão contra a globalização, que essa é a razão pela qual mataram Sadat há 20 anos, e lutaram contra os russos, e tentaram bombardear o World Trade Center em 1993. E essas pessoas estão todas no meio de... globaliação corporativa... mas se preferem acreditar nisso, é algo reconfortante. E isso é uma forma excelente da fazer com que a violência cresça. Isso é violência tribal. Você fez algo comigo, vou fazer algo pior com você. Não me importo quais sejam as razões. Apenas faremos assim. Essa é a maneira que se deve agir. Opinião bem direta, liberal-esquerdista.

Quais são as opções então? Bem, há inúmeras. Uma medida estreita para o início de conversa seria seguir o conselho de radicalistas bastante extremos, como o Papa [platéia ri]. O Vaticano disse imediatamente "olhem, é um crime terrorista terrível". No caso de um crime, você tenta encontrar os responsáveis, os traz à corte, julgam-nos. Não mata cidadões inocentes. Se alguém roubasse minha casa e eu pensasse que o cidadão que fez isso mora provavelmente no bairro do outro lado da rua, eu não pegaria uma arma e mataria todo mundo naquele bairro. Esse não é o meio de lidarmos com um crime, quer ele seja pequeno, como o que acabei de citar, ou realmente massivo, como a guerra terrorista dos EUA contra a Nicarágua, mesmo crimes piories, ou outros intermediários. E há vários precedentes para isso. Na verdade, eu já citei um precedente, a Nicarágua, um estado que abriga a lei. Essa foi provavelmente a razão pela qual a bombardeamos: eles seguiram os princípios corretos. Agora, é claro, não chegaram a lugar nenhum, porque estavam indo contra um poder que não permitiria que procedimentos legais fossem seguidos. Mas se os EUA tentassem atacá-los, ninguém os impediria. Na verdade, todos os aplaudiriam. E há muitos outros precedentes.

Quando o IRA bombardeia Londres, o que é algo extremamente sério, a Grã-Bretanha poderia, apesar de ser algo impraticável - vamos desconsiderar isso... Uma possível resposta seria bombardear Boston, que nada mais é que a fonte da maior parte do financiamento para tais ataques. E, claro, tirar do mapa o oeste de Belfast. Bom, vocês sabem, apesar da impraticabilidade, isso seria idiotia criminosa. A forma de lidar com isso foi o que de fato fizeram. Isto é, achar os responsáveis; trazê-los para julgamento; e considerar as razões. Porque tais atos não vêm do nada. Eles são gerados por algo em particular. Quer sejam um crime nas ruas ou um crime terrorista mostruoso ou qualquer outro. Há razões. E geralmente se se consideram as razões, algumas delas são legítimas e merecem ser estudadas, independentemente do crime, elas precisam ser consideradas porque são legítimas. E esse é o modo de lidar com tais coisas. Há muitos exemplos que tais.

Mas há problemas com essa atitude. Um problema é que os EUA não reconhecem a jurisdição de instituições internacionais. De forma que não podem recorrer a elas. Os EUA rejeitaram a jurisdição da Corte Mundial. E também recusaram ratificar a Corte Criminal Internacional. São poderosos o suficiente para organizarem uma nova corte se assim o quiserem, de forma a não serem impedidos de nada. Mas há um problema com qualquer tipo de corte: você precisa de evidências. Se você for para qualquer tipo de corte, você precisa de algum tipo de evidência, e não de um Tony Blair falando na televisão. E isso é algo difícil, quando não impossível de se achar.

Sabem, pode ser que as pessoas que foram responsáveis pelos crimes de 11 de setembro se suicidaram. Ninguém saberia disso melhor que a CIA. Essas redes são descentralizadas, sem hierarquias. Eles seguem um princípio que é chamado Resistência Sem Líder. Esse é um princípio que vem sendo adotado por terroristas cristões da direita nos EUA. É chamado Resistência Sem Líder. Você tem grupos pequenos que fazem coisas. Eles não falam com ninguém. Há um tipo de razão geral para o que fazem, então fazem. Na verdade, as pessoas que estão engajadas em movimentos pacifistas conhecem bem tais grupos. Costumamos chamá-los de grupos de afinidades. Se vocês considerarem que qualquer grupo em que você esteja afiliado está sendo monitorado pelo FBI, quando algo sério está acontecendo, não se faz uma reunião. Você vai fazer com pessoas que você conhece e confia, um grupo de afinidades; desse modo suas ações não serão conhecidas. Essa é uma das razões pelas quais o FBI nunca conseguiu compreender o que está acontecendo em movimentos populares. E outras agências de inteligência funcionam de igual modo. Eles não conseguem. Isso é Resistência Sem Líder, ou grupos de afinidades, e em redes descentralizadas é muito difíceis de se penetrar. E é bem possível que eles simplesmente não saibam. Quando Osama bin Laden diz que não está envolvido, isso é inteiramente possível. Na verdade, é bem difícil de imaginar como um cara numa caverna no Afeganistão, que não tem sequer um radio ou um telefone, poderia ter planejado uma operação tão sofisticada quanto essa. As chances são que isso é apenas parte do que está por trás de tudo. Vocês sabem, como outros grupos terroristas de Resistência Sem Líder. O que significa que vai ser muito difícil achar evidências.

E os EUA não querem apresentar evidências porque querem poder agir sem precisar disso. Essa é uma parte crucial da reação. Você devem ter observado que os EUA sequer pediram autorização ao Conselho de segurança, o que eles provavelmente teriam dessa vez, não por razões honestas, mas porque os outros membros permanentes do Conselho de Segurança são também estados terroristas. Eles estão felizes em puder juntar-se a uma coalisão contra o que chamam de terrorismo, nomeadamente em favor do próprio terrorismo que praticam. Como a Rússia, que não ia vetar: eles adoram a coalisão. Desse modo, os EUA poderiam muito provavelmente receber autorização do Conselho de Segurança, mas não o quiseram. E não o quiseram porque seguem um princípio de longas datas, que não é característica de George Bush, foi algo explícito na administração de Clinton, articulada, e vai muito além, e esse princípio resume-se ao fato de que temos o direito de agir uniliteralmente. Não queremos autorização internacional porque agimos uniliteralmente a desse modo não a queremos. Não damos a mínima para evidências. Não damos a mínima para negociações. Nos lixamos para tratados. Nós somos o cara mais forte do pedaço. Fazemos o que queremos. Autorização é uma coisa má, e devemos evitá-la. Existe até um nome para isso na literatura técnica. É chamado estabelecer credibilidades. Você precisa estabelecer credibilidade. Esse é um fator bastante importante em muitas medidas. Foi a razão oficial dada para a guerra nos Balcãs, e a razão mais plausível.

Se quiserem saber o que siginifica credibilidade, pergunte ao seu favorito Don da máfia. Ele vai te explicar direitinho o que quer dizer credibilidade. E é a mesma coisa em casos internacionais, sendo que na universidade ela é discutida sob outros nomes maiores, e esse tipo de coisa. Mas o princípio é basicamente o mesmo. E faz sentido. E geralmente funciona. O principal historicista que tem escrito acerca disso nos últimos anos é Charles Tilly, em um livro chamado "Coercion, Capital, and European States". Ele observa que a violência tem sido o princípio central da Europa por centenas de anos e a razão é simples: ela funciona. Vocês sabem, é bastante razoável. Ela quase sempre funciona. Quando você tem uma predominância absoluta de violência e uma cultura de violência atrás dela. Desse modo, faz mesmo sentido segui-la. Bem, isso tudo constitui um problema na tentativa de se trilhar um caminho legal. E se vocês tentarem segui-los, vão realmente abrir portas bastante perigosas. Como os EUA ordenando que o Talibã entregue Osama bin Laden. E eles lá estão respondendo de uma forma que é considerada totalmente absurda e fora da realidade no ocidente, isto é, eles estão dizendo ok, mas primeiro nos dê alguma evidência. No ocidente, isso é considerado algo impraticável. É um sinal de criminalidade. Como é que eles podem estar pedindo evidência? Eu quero dizer, se alguém nos pede para entregar alguém, nós o fazemos no dia seguinte. Não pediríamos evidências. [platéia ri].

Na verdade, é muito fácil provar isso. Não precisamos inventar casos. Por exemplo, nos últimos anos o Haiti tem pedido aos EUA para extraditar Emmanuel Constant. Ele é um assassino em grandes proporções. Ele é uma das figuras mais importantes no extermínio de talvez 4000 ou 5000 pessoas nos meados da década de 90, sob a junta militar, que incidentalmente estava sendo, não de maneira tácita, apoiada pelas administrações de Bush e de Clinton. Bem, ele é um criminoso e tanto. Eles têm bastante evidências. Não há nenhum problema quanto a isso. Ele já havia sido julgado e sentenciado no Haiti e eles estão pedindo aos EUA para emtregarem-no. Bem, quero dizer, façam pesquisas. Vejam quanta discussão houve no tocante a isso. Na verdade, o Haiti renovou o pedido há algumas semanas atrás. Isso não foi sequer mencionado. Por que deveríamos entregar um assassino convicto que foi responsabilizado por grande parte do assassínio de 4000 ou 5000 pessoas há alguns anos atrás? Na verdade, se de fato o entregarmos, quem sabe o que ele teria para dizer? Talvez ele diga que foi financiado e ajudado pela CIA, o que é provavelmente verdade. Não queremos abrir essa porta. E ele não é o único.

Quero dizer, nos últimos 15 anos, Costa Rica tem tentado fazer com que os EUA entreguem um tal John Hull, um latifundiário de Costa Rica que possui propriedades nos EUA, a quem acusam de crimes terroristas. Ele esteve usando suas terras - dezem eles, com boas evidências - como base para a guerra dos EUA contra a Nicarágua, que não é uma conclusão controversa, lembrem-se. Há a Corte Mundial e o Conselho de Segurança por trás disso. Então eles têm tentado fazer com que os EUA o entreguem. Que tal? Não.

Eles na verdade confiscaram a terra de um outro latifundiário norte-americano, John