sábado, 28 de fevereiro de 2009

6 - HAMIR HADDAD - Manifestos Teatrais dos Novos Nobres


sobre o des-incentivo causado pelos interesses dos governos democráticos capitalistas para prosseguir plenamente com o seu trabalho.

“As condições de vida cultural das pessoas já são tão difíceis. Você recebe um imóvel, investe, e de repente você ter que pagar um aluguel de mercado, é te obrigar a colocar ali atividades de mercado também. Então significa que ao invés de fazer meu trabalho, de trabalhar com a comunidade, com os adolescentes de baixa renda, de fazer teatro de rua, trabalhar em educação popular, pois eu trabalho com a casa aberta, faço festas e não cobro ingresso, tudo isso teria que ser transformado. Se vou ter que pagar o preço de mercado, vou ter que virar o “Ricardo Amaral” da Lapa. E a última coisa que a Lapa precisa é do Ricardo Amaral, ele é bom para a Zona Sul, Miami. Eu acho que a Lapa tem características especiais que podem e devem ser respeitadas.

Essa história de fazer pagarem preço de mercado por aluguel daquelas casas os grupos que receberam essas casas, por serem justamente os grupos que tem uma atividade cultural de extrema importância e que não têm condições de se manter, é inverter totalmente o sentido das coisas, é matar. Vai fazer mais um saneamento étnico e vai limpar; vai sanear e ficar bonito, e vai morrer. Há muitas políticas culturais que matam a cultura na nascença. E há uma insensibilidade muito grande, às vezes, dos órgãos, do Poder Público, em relação a essa questão cultural. Porque na verdade a maior parte deles nem tem convívio com isso, nem sabem direito do que se trata e nem dão muita importância, como se política e cultura fossem coisas inconciliáveis. Fico com medo dessa insensibilidade, desse atitude de provocar um aborto numa região que é essencial para o Rio de Janeiro, é uma região que tem a possibilidade de ser o centro cultural do Brasil. A Lapa vive uma efervescência cultural que nenhuma outra cidade do Brasil jamais teve ou terá.
Não pode virar um lugar para turista com alguns restaurantes caros, como foi feito no Pelourinho, e expulsar a população dali. Que os turistas venham ou que tragam gente no fim de semana, é a mistura democrática, é a qualidade étnica da coisa, é trabalhar com as diferenças. As pessoas saem do mundo inteiro para verem um lugar que não seja igual no mundo inteiro.
Tá na rua ensina teatro a menor carente e de rua


“Tá na Rua é um grupo de teatro de rua, temos esse nome porque fomos para a rua nos salvar, porque estávamos morrendo dentro das salas fechadas, servindo ao público que o golpe militar colocou dentro dos teatros, e atendendo às solicitações dos interesses militares. Então para não morrermos, fomos para a rua buscar a força popular para nos manter vivos. E mais ainda, nos deu uma visão da questão cultural muito mais ampla que um intelectual de classe média trancado nos seus guetos podia ter. Quando fomos para a rua descobrimos uma possibilidade enorme com a força popular.

A nossa escola é uma formação de artes, educação e cidadania, a gente faz questão de ter a questão da cidadania incluída no nome do meu trabalho, porque tudo que a gente faz passa por aí. Fazemos formações de atores, fazemos espetáculos de rua e de palco, e trabalhamos na área de educação popular com adolescentes de baixa renda, crianças, menores de rua... E não temos nenhum convênio até agora com nenhuma organização internacional. Eu falo isso para deixar claro que não sou mais um desses que estão ganhando dinheiro em nome dessas coisas. Aqui tem cultura? Tem sim, senhor...”

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

3º - CRÍTICA AO TEATRO FÚRIA E OS INSURRETOS FURIOSOS - ELIANE LISBÔA

clica na imagem e a veja gigante
I FESTIVAL BRASILEIRO DE TEATRO DE ITAJAÍ
ESPETÁCULO: ENCAIXOTANDO SHAKESPEARE (MT)
CRÍTICA: ELIANE LISBôA


O TEATRO FALTOU AO ENCONTRO

Uma enorme caixa, com sua frente fechada em muitos quadrados negros por onde vão entrar e sair cabeças, braços e pernas compondo os muitos personagens shakespeareanos e o próprio autor inglês. Um material e proposta curiosos, inesperados, geradores de expectativas.
O espetáculo se segue e somos colocados diretamente no centro da “trama”. Os personagens de Shakespeare se rebelaram contra o autor e o raptaram para exigir mudança em suas histórias. E depois disto, idas e vindas de braços e pernas, cabeças e flores, para descobrirem no final que eles são apenas personagens e portanto não podem ser mudados.
À parte isto, pequenas piadinhas – algumas de evidente mau gosto como a desrespeitosa referência a Daniela Ciccarelli – que aproximam o universo dramático da peça ao pobre humor televisivo.
E nada mais acontece. Nem antes, nem depois, nem durante. Pois se a história é simplória, o espetáculo poderia oferecer-nos a experiência de uma movimentação e gestualidade exigentes, expressivas, mas ali também não encontramos sustentação para nosso desejo de ver teatro. Os gestos são frouxos, sem vida, assim como a expressão facial. E já que tudo se sustenta nestes dois elementos...
E o próprio caixote acaba se transformando num enorme peso sem serventia, pois somos o tempo todo confrontados ao painel dos quadrados negros. Imagina-se que dentro dele o mundo de cruzamento de corpos, na tentativa de compor os que são apresentados ao público, poderia oferecer algum material interessante a se apreciar. Talvez se as paredes laterais fossem derrubadas, um outro espetáculo se configurasse, no confronto entre o que se vê e o que está por trás disso. Mas a caixa está fechada. No máximo explora-se em alguns momentos sua abertura no alto.
De todo modo, se isto talvez oferecesse alguma surpresa e abrisse caminho para o interesse do público, seria também uma saída externa ao jogo proposto. O grupo afirma ter criado um método com sua Caixa Mágica. Mas se método existe, a apresentação do resultado de sua aplicação está longe de poder valorizá-lo, já que há uma fragilidade absoluta, onde o que se percebe é a ausência de teatralidade, na dramaturgia e na atuação.
E no entanto, é fato que a redução do corpo do ator a poucos elementos, obrigando-o a explorar ao máximo o rosto e a voz, e a jogar com outros atores na troca de braços e pernas poderia ser um excelente exercício atoral, garantindo um domínio excelente de seu próprio corpo no jogo cênico, e não só deste espetáculo. Mas para isso é preciso a prática, o exercitar constante, numa construção paciente e cuidadosa, minuciosa, de cada um dos movimentos e falas, o que certamente deveria oferecer um ouro resultado estético.
Não podemos deixar de sentir que o grupo tratou com ligeireza e superficialidade um interessante material que ele próprio gerou. Do espetáculo, fica-nos a sensação de um grupo de amigos queridos que resolvem brincar de teatro. E depois apresentar ao público a brincadeira com a qual, imagina-se, se divertiram muito.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

ACABAR COM AS REUNIÕES - 5º MANIFESTO FURIOSO


MANIFESTO ABOLICIONISTA DAS REUNIÕES

Por quê acabar com as reuniões? Porque as reuniões são chatas e altamente corporativistas. São levianas porque suas deliberações são tomadas baseando-se nas necessidades para se fazer existir a corporação morta e não nas necessidades para se fazer indivíduos vivos. Os indivíduos são escravos da corporação. Numa corporação morta, cada indivíduo deve adaptar o seu verdadeiro anseio, o seu mais legítimo sonho, os seus mais profundos valores aos valores da corporação. Os resultados dos sucessos da corporação(sucesso profissional, dinheiro, prestígio, bens...) são os seus novos valores.Os seus mais legítimos sonhos devem ser categorizados como hobby. Deve se conformar. Deve-se até dizer que tem motivos para se sentir feliz na corporação que caminha tão bem por causa das reuniões que são chatas e atraem gente competente, que geralmente são competentes porque são preparadas e preparadas porque geralmente são competitivas e competitivas porque são gananciosas, mesquinhas e egoístas. Geralmente. E geralmente mentirosas porque se dizem generosas porque se doam de corpo e alma à corporação. Mas geralmente. Na exceção os que não mentem são alienados nesse ponto: Não têm opinião sobre a corporação em que são excelentes e indispensáveis parafusos. Mas é claro – Perfeitamente substituíveis. Parafusos egoístas. E egoístas primeiramente em relação a si mesmos! Porque primeiro, por livre e espontânea vontade , deixam de ser eles mesmos (se sentem sortudos os que conseguem ser eles mesmos nas horas de folga, ruá!!! O indivíduo corporativo só é ele mesmo como hobby, ruá, ruá, ruá!!!) deixam de ser eles mesmos para se nivelarem à “igualdade” entre os indivíduos da corporação sem vida que escraviza a todos.

O Que Construir Nos Escombros das Reuniões Tomadas Pelas Garrafas Incandescentes?

Convivência 24 horas, para potencializar nossos desejos e socializarmos nossas necessidades de vivência (sobrevivem os indivíduos-hobby)
Para isso antes de tudo é necessário que façamos nossos manifestos pessoais. Manifesto do que precisamos para sermos felizes que sejam perfeitamente possíveis de se potencializar em cooperação.
Fazer manifesto, casar manifestos, formar aldeias vivas, incendiar
corporações mortas.
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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

5 - OS OLHOS DO ATOR - ROBERTO MALLET - Série Manifesto Teatral dos Novos Nobres


Este texto corresponde à palestra que proferi no Festival Universitário de Teatro de Blumenau no dia 7 de julho de 2000, onde procurei fazer uma síntese do que seria tratado na oficina de mesmo nome. A sua transcrição foi feita por Fernando Weffort. (Roberto Mallet)

O que é preciso ver para ser ator, para ser um artista? Essa é uma discussão que está ligada à arte contemporânea de um modo geral e não só ao trabalho do ator especificamente. Então, gostaria de começar lembrando a origem da palavra Teatro, que muitos de vocês aqui devem conhecer. Teatro quer dizer lugar onde se vai para ver – Theátron. Esse ver do teatro, da palavra grega theaomai, provém da raiz thea, um verbo que se traduziria mais corretamente para o português por contemplação. A contemplação é uma visão intuitiva das coisas, uma visão intelectual, da inteligência. O teatro não seria, portanto, um lugar onde eu vou para encher os olhos – como muitas vezes acaba acontecendo no teatro e na arte contemporânea, uma arte que se dirige mais ao olhar sensível. Se olharmos para a história da arte, ela sempre foi pensada, exceto em algumas correntes nos últimos dois séculos, como se dirigindo fundamentalmente à nossa inteligência através dos sentidos.


Eu venho dizendo há alguns anos que a formação do artista é também a construção de um olhar, de uma maneira de olhar, um olhar que pretenda compreender. E a nossa questão aqui é: eu como ator preciso desenvolver que tipo de olhar? Me parece que isto é algo que não fica claro para nós atores. Conta-se de um pintor que estava fazendo um quadro e procurava uma determinada cor que estava próxima ao lilás, e ele não encontrava essa cor. Era um pintor que costumava ir muito aos museus, observava muito as obras de arte como inspiração e treinamento do olhar. E esse pintor, ainda atrás desse lilás, chama um coche para ir a um museu exatamente para ver se encontrava a porra do lilás. Quando chega o coche – era um dia iluminado, com muito sol –, era um coche todo amarelo, e quando ele viu o coche (vocês devem saber que existem cores complementares que irradiam-se em torno dos objetos - se você tem um objeto muito amarelo, em torno dele você terá uma aura roxa, lilás, que é complementar do amarelo), quando viu o coche ele disse: "não preciso mais ir ao museu"; voltou e preencheu a zona em torno desse ponto onde ele queria o lilás com amarelo, e criou essa cor complementar. Ou seja, um pintor é alguém que tem um olhar afiado para cores, manchas, volumes, linhas... É alguém que aprende a olhar. Quem não consegue ver bem, não consegue desenhar bem, não consegue pintar bem, é óbvio. Claro que ele já tem esse talento natural, mas é algo que precisa ser desenvolvido. Um músico é alguém que ouve bem, alguém que consegue ouvir coisas que nós não ouvimos. Não é? A gente conhece músicos e fica às vezes assustado: "como é que esse cara está ouvindo tanta coisa? Eu não estou ouvindo nada disso." Mas as coisas estão lá, ele é capaz de ouvir, ou seja, ele tem um ouvido treinado.


E nós atores temos que ter um olho treinado para o quê? Qual é a nossa matéria de trabalho? O que é que corresponde às linhas, volumes, cores no trabalho do ator? E isso liga-se com a questão do teatro grego: eu vou ao teatro para ver o quê? Para compreender o quê?


Parece-me que na formação do ator se descuida muito esse aspecto - a gente precisa ver teatro para aprender a fazer teatro. Nós estamos começando o Festival aqui, nós vamos passar ainda por vários debates. E o que eu tenho visto na maioria dos debates em outros festivais por aí - neste aqui também, em outras edições - é que o olhar das pessoas sobre o espetáculo é muito vago, é muito pouco definido. As pessoas não sabem para onde devem olhar. Isto resulta numa avaliação vaga, numa avaliação indefinida, baseada muito mais no gosto do que em dados objetivos; "gostei", "não gostei", "não me agrada", "você poderia ser mais incisivo", quer dizer, coisas que não se baseiam na obra propriamente dita mas em reações subjetivas.


Eu venho nos últimos anos discutindo muito um tema que me parece um pouco fora do nosso imaginário, do nosso campo de discussão, que é a nossa dificuldade em ser objetivos, em ver. Claro, nós estamos vivendo um período em que, há pelo menos 300 anos, a nossa civilização entrou numa relativização de todos as coisas. Começa com Guilherme de Ockam em 1350, passa por Descartes e chega em seu ápice com Kant, que chega à conclusão de que eu só posso saber o que eu percebo do mundo, mas não posso saber nada sobre o mundo propriamente dito; que eu não posso afirmar nada sobre a realidade externa, sempre ela é subjetiva. Nós vivemos ainda sob a égide desse pensamento. A Academia, a Universidade inteira – não esta ou aquela, mas toda Universidade – vive sob a égide desse pensamento. Uma relativização de todas as coisas. A filosofia contemporânea inteira, a sociologia, a lingüística, etc., etc. De maneira que muitas vezes não conseguimos ter um olhar objetivo sobre as coisas, e vivemos em nossa imaginação. O nosso imaginário se torna o filtro através do qual nós vemos as coisas.


Eu dizia que nos debates, muitas vezes (quando a gente está de fora é mais fácil ver do que quando está de dentro), os diretores e atores, ao falarem de seu espetáculo, falam sobre um espetáculo que eles imaginaram e não sobre o espetáculo que está lá. Não sei se vocês já perceberam isso, é muito comum. Eu imaginei determinadas coisas, eu tenho determinadas idéias sobre o espetáculo e não consigo confrontar essas idéias, essas imagens, com o objeto que é o próprio espetáculo. Aí vem todo aquele discurso: "tudo é relativo"; "isso é subjetivo"... Então eu gostaria que vocês refletissem – a nossa oficina busca isto – sobre a distância que muitas vezes há entre o que eu penso sobre as coisas ou o que eu imagino sobre as coisas e a maneira como elas de fato se apresentam a mim.


Mas voltando ao trabalho do ator, que matéria é essa que meu olho deve ser treinado para ver? Obviamente são as ações. A matéria do teatro, a matéria do ator são as ações. Fundamentalmente o ator é aquele que age – por definição. A melhor maneira que eu tenho encontrado nos últimos anos de explicar o que é uma ação é baseada na teoria das quatro causas do Aristóteles.


Para Aristóteles, todo objeto, todo ente, tudo aquilo que existe no universo tem quatro causas. A causa eficiente, a causa formal, a causa material e a causa final. Se a gente pensar isso num objeto qualquer, um objeto artificial – uma cadeira por exemplo – fica bastante claro para nós. Para que uma cadeira exista o que é preciso? Bom, primeiro é preciso que alguém a faça; uma cadeira não aparece do nada. É o que Aristóteles chamava de causa eficiente. Segundo, ela precisa ter uma forma. O que é forma? É a estrutura interna dela, é a idéia dela (idéia no sentido aristotélico - eidos). Terceiro, ela precisa de uma matéria da qual seja feita; eu não posso fazer uma cadeira de nada. Então eu vou ter sempre uma matéria, que é a causa material. E quarto, ela tem uma finalidade; aquilo é construído por alguma razão.


Aristóteles aplica isso ao universo inteiro, tanto ao universo artificial quanto ao universo natural. Nós não vamos entrar aqui na questão do universo natural porque tem muita discussão nisso e nós vamos perder o rumo da nossa conversa. Então vamos nos limitar aos objetos artificiais. Nos objetos artificiais isso é de uma obviedade indiscutível. Numa obra de arte, por exemplo (numa cadeira), você sempre vai ter esses quatro elementos. No nosso comportamento isso aí é indiscutível também; a gente não faz nada, absolutamente nada, sem razão alguma. Podemos até pensar que estamos fazendo sem razão - aí entra toda a teoria freudiana, da psicanálise e de todas psicologias que buscam encontrar as motivações ocultas em atos aparentemente sem sentido... e isso está por trás dessa teoria, ela parte desse princípio: não existe nada que aconteça por acaso. Se você sonhou com alguma coisa deve ter alguma razão para isso, e ela vai atrás dessas razões.


Agora, se a gente se voltar para o ator - Stanislavski falava disso exaustivamente, não tenho nada de novo para dizer para vocês, talvez eu só esteja tentando pegar isso a partir de alguns elementos mais acessíveis a nós – toda ação tem o que ele chamava de objetivo, e que o Aristóteles chamava de causa final, e é ela que move a ação. Dizia Aristóteles que a causa final é que move, mas ela não move da mesma maneira que a causa eficiente - que é aquele que vai lá e faz, se movimenta e age para fazer a cadeira - ela move, de uma certa forma, como atração. Eu quero chegar naquele objetivo e portanto eu faço alguma coisa. É esse o sentido de movimento para a causa final, o objetivo.


Agora, no trabalho do ator a gente percebe que existe duas ações. Vamos pegar um espetáculo realista em que é mais fácil pensar isso, mas isso se aplica, guardadas as transposições necessárias, para o teatro não-realista, para a dança, enfim, para qualquer uma das artes que chamamos hoje de performáticas. No teatro realista, você tem a ação da personagem - quando Stanislavski falava em objetivo ele estava se referindo a essa ação, ao objetivo da personagem. Digamos, quando Hamlet convence os atores a fazer aquele espetáculo com o texto que ele escreveu, qual era a finalidade dele? A finalidade dele era testar uma teoria... testar o que o fantasma falou para ele; ver se realmente o rei matou o pai dele ou não. Ele tem uma finalidade objetiva ali. Isso não pode ser esquecido pelo ator.


Bom, mas não é só essa ação que a gente tem no ator. Aliás, essa ação não está no ator, está no imaginário do ator, às vezes muito mais no imaginário do público do que no imaginário do ator. Há uma confusão freqüente sobre isso entre os nossos atores: achar que há uma identificação de objetivo, ou mesmo de ser, entre o ator e a personagem. Isso é uma grande bobagem; você não pode ser a personagem, por definição - você é você. Segundo, você não pode sentir as coisas que a personagem sente. Muitos atores se perdem nisso, tentando sentir o que a personagem sente, achando que memória afetiva em Stanislavski era isso - não era! É bem verdade que nos livros que temos traduzidos do Stanislavsky, a linguagem é um pouco confusa e pode nos levar a pensar isto. Mas em outros momentos isso é objetivamente dito por ele: o ator não deve se preocupar em sentir, o ator tem que se preocupar em agir. O sentimento é decorrência da ação. E mais, o ator não sente as coisas que a personagem sente. Imagine se o ator que faz Otelo sentisse o que Otelo sente. Seria a produção mais cara do mundo; precisaria de uma atriz por dia, mais o enterro, etc., etc., ia sair muito cara essa produção. O que o ator sente é outra coisa - e não importa muito o que ele sente, importa o que ele faz.


Essa segunda ação do ator é uma ação que ele realiza sobre o seu próprio organismo psico-físico e sobre o espaço que o rodeia, sobre os outros atores, sobre o público... enfim, é a ação do criador propriamente dita. Aqui podemos dizer que o ator é causa eficiente; a matéria é o seu próprio organismo psico-físico; a forma, a ação da personagem; e a finalidade é a própria obra.


Está dando para acompanhar? Porque aqui é que está o buraco, me parece. A finalidade é a própria obra. É o que Stanislavski chamava de superobjetivo. E é a própria obra enquanto sentido também – a obra tem um sentido – e não a própria obra em geral – "fazer teatro". Me parece que este é um dos nossos equívocos fundamentais. Claro que na oficina a gente vai ter a oportunidade de fazer pequenos experimentos práticos que vão esclarecer isso um pouco melhor do que essa breve conversa. Mas eu vou tentar falar um pouco sobre isto, porque me parece que se conseguirmos ver isso com mais clareza, nosso trabalho ganharia muito.


Uma vez que a ação da personagem é a causa formal do trabalho do ator, ela tem que estar muito presente nesse trabalho. O Stanislavski dizia uma coisa genial em relação a isto: o ator não pode pensar nunca em generalidades. E é a coisa que a gente mais faz.


Todos vocês devem ter tido essa experiência: você entra em cena, começa a desenvolver alguma coisa, o diretor pára e diz: mas você está fazendo isso por quê? Você está querendo o quê? "- Não, é que... É..." - a gente não sabe, é sempre muito geral. "- Não, é que... ela está querendo ser feliz." Mas o que é isso, "querer ser feliz"? "Ela quer se vingar..." Mas o que é isso, "querer se vingar"? Isso é muito geral. É o que eu dizia antes, nós vivemos num mundo muito abstrato. Porque o mundo da imaginação é um mundo abstrato, é um mundo esquemático. Quando você lembra de alguém, por exemplo - mesmo pessoas que você conhece intimamente, mesmo sua mãe - a imagem que você tem de sua mãe é um esquema, onde está faltando um monte de coisa, é abstrata. Como é que eu faço para concretizar isso, como ator? Como é que eu transformo isso em ação? Esta é a pergunta.


A imaginação do ator tem que ser uma imaginação que se encarna. Ou seja, é uma imaginação que não é puramente mental. A gente muitas vezes acha que a imaginação é uma espécie de filme que está lá na nossa cabeça. Reduzimos a imaginação à memória visual. Ok, nós temos mesmo um preponderância do olhar na nossa percepção, mas quando eu transformo isso em ação, isso tem que se encarnar em meu corpo, ou seja, eu tenho que trabalhar com os meus cinco sentidos.


Jacques Copeau tem uma definição muito legal sobre o trabalho do ator, onde ele diz que o ator não mente - não é uma mentira o trabalho do ator, mas uma espécie de ação (eu prefiro a palavra ação, ele fala em sentir o imaginário), uma ação imaginária, uma ação ficcional.


O ano passado tivemos uma pequena discussão aqui ao longo do Festival sobre a questão do teatro - o que é o teatro? Tinham pessoas que diziam assim: não existe o teatro, existem teatros! Como se o plural resolvesse o problema. Mas quando você fala teatro você está falando do quê? E se é plural, é plural do quê? Isso é uma negação, de novo, típica do mundo contemporâneo, uma negação das essências. Uma idéia de que as essências não existem. De uma certa forma, de fato elas não existem, porque elas só existem na coisa, não existe uma essência separada, uma essência pura, isso não existe mesmo. Mas a definição de teatro (talvez a mais apropriada, ou a que eu mais uso) é: alguém que age num plano ficcional diante de alguém que vê. Se você tiver isso você já tem teatro.


Nesse caso, por exemplo, que eu citava, um exercício onde a pessoa não sabe exatamente o que ela está fazendo, ela não tem claro um objetivo interno à cena. O que é que está acontecendo de fato? Eu concluí ao longo desses meus anos de trabalho que é a causa final que está errada. Não é que ela não tenha um objetivo, é que ela está com um objetivo equivocado. O objetivo dela é, por exemplo, resolver a cena. Ela entra para isso. Dá para entender onde é que está esse buraco?! Isso é fundamental! Digamos que você tem essa cena de que a gente falava, do Hamlet. Ele quer convencer os atores a fazerem um determinado espetáculo porque ele está interessado em testar o rei. Esse objetivo é muitas vezes esquecido pelo ator e ele entra na cena para fazer teatro – é isso que está na cabeça dele, a gente vê isso nos espetáculos com muita freqüência, e este é o ponto a partir do qual o espetáculo começa a se degradar, começa a esvaziar. As pessoas já não repetem, já não refazem os espetáculos com os seus objetivos reais, mas com o objetivo de fazer de novo, de repetir; elas mudam o objetivo insensivelmente, e não percebem que o estão mudando. Agora mesmo com o espetáculo que eu estava dirigindo lá em São Paulo aconteceu isso no meio da temporada. Eles fizeram um espetáculo péssimo. E você vai ver por que é que isso acontece - é porque não há mais o impulso inicial que movia o ator; ele esqueceu daquele impulso e começa a gerar uma outra preocupação que é repetir e fazer o espetáculo bem feito. Isso quando havia uma ação originalmente.


Muitos atores têm como objetivo fundamental ser admirados. A pessoa está em cena não é para fazer teatro, não é para te dizer alguma coisa, mas é para que você diga alguma coisa para ela. Nós precisamos identificar isso, porque isso está na cena.


Notem: a causa final está na cena. É ela que move o agente. Dito de outra maneira: a causa final determina a obra. E se ela determina a obra, eu posso identificá-la na obra. Há pouco tempo eu assisti um espetáculo, em uma mostra, que era uma série de histórias... Era um espetáculo composto de narrativas... E esse espetáculo era costurado por pequenas canções. Eram dois atores, um que tocava violão e cantava e outro que fazia mais a narrativa e que também cantava. E acontecia uma coisa muito ruim no espetáculo: a narrativa era maravilhosa, as músicas de ligação eram muito fracas. Quando entravam essas músicas o espetáculo caía lá em baixo. Aí, quando retomava a narrativa, o espetáculo vinha subindo e voltava para o ponto. Vendo o espetáculo imediatamente compreendi: esse ator, o violonista, é o compositor das músicas. Só pode ser isso. É a única razão para que essas músicas estejam costurando o espetáculo. E tiro e queda! Ele era o compositor das músicas. Dá para perceber? Quer dizer, o cara simplesmente ficou cego, ele deixou de ver a obra que estava construindo em função do desejo pessoal de mostrar suas músicas. E ele simplesmente fica cego mesmo. Porque se ele soubesse disso, tudo bem, estão me entendendo? O que nós estamos discutindo aqui é isso: o problema é que você cega, deixa de ver. O objetivo é tão forte que cobre, te cega. Porque se o cara entrasse em cena sabendo que ele quer ser admirado, ok, porque ele conseguiria transpor isso e poderia até vir a conseguir o seu intento, mas o problema é que ele não sabe disso e a direção não percebe isso também. Se o objetivo dele é "fazer teatro", é "mudar o mundo", isso é uma coisa muito vaga, muito ampla. Os objetivos precisam ser concretos.


E o que é essa ação dramática, então? Essa é a minha discussão há anos, quem me conhece sabe que esse é o tema corrente, obsessivo da minha discussão. Porque eu acho que a maioria dos nossos atores não compreende mais o que é a ação dramática.


Por exemplo, hoje em dia temos muitos espetáculos onde o objetivo é mostrar as habilidades adquiridas pelo elenco. Algumas pessoas que vêm na linha do teatro antropológico caem nisso. Não estou nem dizendo que o próprio teatro antropológico cai nisso. Mas o cara adquiriu uma habilidade, passou meses, anos trabalhando para adquirir a porra daquela habilidade e ele não se contenta que aquilo seja apenas um elemento estrutural no seu trabalho, ele precisa mostrar para as pessoas a habilidade que ele tem. E aí você perdeu a dimensão da ação, e portanto a dimensão do sentido, e foi para a demonstração de habilidade, que é um fato circense e não teatral. Eu vou ao circo para ver habilidades desenvolvidas. Uma vez eu vi no programa do Jô Soares um treinador de orangotangos. Depois de demonstrar várias habilidades do orangotango, havia um número em que o orangotango comia, numa mesinha. O Jô perguntou-lhe: "Quanto tempo para fazer o orangotango comer no prato?" E o treinador respondeu: "Um ano só para fazê-lo pegar na colher." E e é isto, você vai ao circo e aplaude porque o cara perdeu um ano da vida dele para fazer um orangotango pegar numa colher. É esse o sentido do circo. O Barba tem uma definição legal sobre isso – eu tenho as minhas diferenças com o Barba, mas o trabalho teórico dele tem um valor imenso... Eu costumo dizer que o Barba faz teatro comparado e não antropologia teatral - ele comparou várias formas de teatro e tirou os princípios que subjazem a todas elas, e é um trabalho brilhante, nenhum de vocês pode desconhecer a obra dele, especialmente o livro A Canoa de Papel, que para mim é o livro mais generoso do Eugênio Barba, e também o de maior utilidade para os atores. Mas, voltando, ele diz uma coisa que é muito legal nesse sentido. Ele diz: eu vou ao circo para ver algo que é incrível. Minha relação com o circo é essa, eu vejo o cara fazendo e percebo que eu não conseguiria fazer aquilo. Ele está demonstrando uma habilidade que eu não tenho. E eu vou ao teatro para ver algo que é crível. É o contrário. No teatro eu acredito (ficcionalmente, é claro) no que está acontecendo. Então, toda demonstração de habilidade no teatro me distancia, no sentido de eu observar aquilo como circo, ou seja, como algo que não tem sentido senão a demonstração da habilidade.


Portanto toda ação, se tem uma causa final, tem um sentido. Houve um tempo dem que eu costumava dizer que num espetáculo, ou num determinado momento do espetáculo, não tinha ação. Mas é preciso ir mais a fundo nisso. Na verdade é impossível que não tenham ações lá. De acordo com Aristóteles, tudo está agindo o tempo todo. O que ocorre é que a ação não é dramática, ou seja, a ação não é teatral. O objetivo do que o ator está fazendo não corresponde, não se integra no contexto do teatro. Por exemplo, uma ação cujo objetivo seja mostrar as habilidades do sujeito saiu do âmbito teatral. O cara que está te mostrando os belos pensamentos que ele teve, as coisas muito interessantes que ele tem a dizer, saiu do âmbito teatral.


Voltando à questão do olhar do ator - do olho do ator: para onde o nosso olhar tem que se dirigir no dia a dia? O que é que nós temos que observar? As ações e, portanto, os sentidos das coisas. Não de um ponto de vista crítico - não tenho que observar os homens como se eu fosse um técnico de laboratório, um crítico... aliás, você vai se tornar um chato se você for por esse caminho, que está sempre analisando, detectando o que é as pessoas estão querendo. Mas com amor. Ou seja, eu tenho que me colocar no lugar das pessoas e tentar perceber o que elas querem, por que é isso que está determinando a ação delas. Não é isso? Eu sei quem alguém é não pelo seu caráter, mas pelas suas ações. É o que o velho Aristóteles dizia: no teatro o caráter não é o mais importante, o caráter da personagem, mas a trama dos fatos, as ações. Eu sei quem alguém é pelas coisas que ele faz. Não adianta a pessoa me dizer: olha, eu sou muito generoso... A gente não acredita. Esperamos até ver essa pessoa numa situação tal que nos revele se realmente ela é generosa ou não. O que nós falamos sobre nós mesmos (e sobre os outros) tem pouca importância se comparado ao que nós fazemos.


Bom, eu queria concluir a minha fala dizendo que nos últimos anos eu comecei a colocar como critério de avalição de um espetáculo - como jurado já tive meus problemas por causa disto - a sua generosidade. Porque uma obra de arte é feita para o público e um espetáculo que é feito para ser admirado, louvado, é um espetáculo que está fechado em si mesmo. Eu gosto de dizer que o ator é um presente que se dá. Então esse ato de generosidade, de doação, está por trás da ação do ator. Se você conseguisse ter isso mais claro já eliminaria metade das ações equivocadas que você pode realizar em cena. Metade. A outra metade tem que ser alcançada por outro caminho.


O Jacques Copeau tem uma frase definitiva sobre essa questão: "para o ator doar-se é tudo; e para doar-se é preciso antes possuir-se". Então esse olhar que pretende conhecer o outro, deve também ser um olhar objetivo e - aí sim muito cruel - em relação a nós mesmos. Também temos que observar nas nossas ações o que de fato nos move. Porque somos muitas vezes grandes mentirosos em relação a nós mesmos. Douramos a pílula. A gente está querendo uma coisa, mas para não confessá-lo dizemos que estamos querendo outra. E isto para nós mesmos! Nós conseguimos enganar a nós mesmos, e isso é um verdadeiro prodígio.


Esse questionamento das ações no mundo, inclusive das minhas, ou talvez principalmente das minhas, é que pode me dar um conhecimento mais profundo da matéria (ou da forma, depende do ponto de vista) do ator, que é a ação.

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terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

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(capítulo 13-Capítulo final)


O QUE ISSO DIZ A VOCÊ não é prosa. Pode ser pendurado no quadro de avisos, mas ainda está vivo & retorcendo-se. Não pretende seduzi-lo, a não ser que você seja de extrema juventude & beleza (anexe uma foto recente).

Hakim Bey mora num decadente hotel chinês onde os proprietários balançam a cabeça de um lado para o outro enquanto lêem os jornais & escutam transmissões estridentes da Ópera de Pequim. O ventilador de teto gira como um dervixe indolente – suor pinga sobre a página – o cafetã do poeta está encardido, seus cinzeiros derramam cinzas no tapete – seus monólogos parecem desconexos & levemente sinistros – por trás das janelas fechadas, o gueto desaparece entre palmeiras, o ingênuo oceano azul, a filosofia do tropicalismo.

Numa estrada em algum lugar a leste de Baltimore, você passa por um trailer Airstream, & enxerga uma grande placa plantada na grama: LEITURAS ESPIRITUAIS, com a imagem de uma rude mão negra sobre um fundo vermelho. Lá dentro, você encontra livros sobre sonhos & numerologia, panfletos sobre vodu & macumba, revistas de nudismo velhas & empoeiradas, um pilha de Boy´s Life, tratados sobre briga de galos... & este livro, Caos. Como palavras ditas num sonho, portentosas, evanescentes, transformando-se em perfumes, pássaros, cores, música esquecida.

Este livro se mantém a distância por uma certa impassibilidade em sua superfície, quase que visível através de um vidro. Ele não abana o rabo & não grunhe, mas morde & estraga a mobília. Ele não tem um número ISBN & não o quer como discípulo, mas pode seqüestrar seus filhos.

Este livro é nervoso como o café ou a malária – ele cria, entre si & seus leitores, uma rede de desertores & outsiders -mas é tão cara-de-pau & literal que praticamente se codifica – fuma a si próprio em estupor.

Uma máscara, uma automitologia, um mapa sem nome de lugar algum – hirto como uma pintura egípcia que, no entanto, logra acariciar o rosto de alguém &, de repente, encontra-se na rua, num corpo, envolvido em luz, andando, acordado, quase satisfeito.

Nova York, 1° de maio a 4 de julho de 1984

FEITIÇARIA


(capítulo 12)

O universo quer brincar. Aqueles que por ganância espiritual se recusam a jogar & escolhem a pura contemplação negligenciam sua humanidade – aqueles que evitam a brincadeira por causa de uma angústia tola, aqueles que hesitam, desperdiçam sua oportunidade de divindade – aqueles que fabricam para si máscaras cegas de Idéias & vagam por aí à procura de uma prova para sua própria solidez acabam vendo o mundo através dos olhos de um morto.

Feitiçaria: o cultivo sistemático de uma consciência aprimorada ou de uma percepção incomum & sua aplicação no mundo das ações & objetos a fim de se conseguir os resultados desejados.

O aumento da amplitude da percepção gradualmente bane os falsos eus, nossos fantasmas cacofônicos – a "magia negra" da inveja & da vingança volta-se contra o autor porque o Desejo não pode ser forçado. Quando o nosso conhecimento da beleza harmoniza-se com o ludus naturae,a feitiçaria começa.

Não, não se trata de entortar colheres ou fazer horóscopos, não é a "Aurora Dourada" nem um xamanismo de brincadeira, projeção astral ou uma Missa Satânica – se você quer mistificação, procure as coisas reais, bancos, política, ciência social – não esta baboseira barata da Madame Blavatsky.

A feitiçaria funciona criando ao redor de si um espaço físico/psíquico ou aberturas para um espaço de expressão sem barreiras – a metamorfose do lugar cotidiano numa esfera angelical. Isso envolve a manipulação de símbolos (que também são coisas) & de pessoas (que também são simbólicas) – os arquétipos fornecem um vocabulário para esse processo & portanto, são tratados ao mesmo tempo como reais & irreais, como as palavras. Ioga da Imagem.

O feiticeiro é um Autêntico Realista: o mundo é real – mas a consciência também o deve ser, já que seus efeitos são tão tangíveis. Um obtuso acha que até mesmo o vinho não tem gosto, mas o feiticeiro pode se embriagar simplesmente olhando para a água. A qualidade da percepção define o mundo do inebriamento – mas, sustentá-lo & expandi-lo, para incluir os outros, exige um certo tipo de atividade – feitiçaria. A feitiçaria não infringe nenhuma lei da natureza porque não existe nenhuma Lei Natural, apenas a espontaneidade da natura naturans, o Tao. A feitiçaria viola as leis que procuram acorrentar esse fluxo – padres, reais, hierofantes, místicos, cientistas & vendedores consideram a feitiçaria uma inimiga porque ela representa uma ameaça ao poder de suas charadas & à resistência de sua teia ilusória.

Um poema pode agir como um feitiço & vice-versa – mas a feitiçaria recusa-se a ser uma metáfora para uma mera literatura – ela insiste que os símbolos devem provocar incidentes assim como epifanias particulares. Não é uma crítica, mas um refazer. Ela rejeita toda escatologia & metafísica da remoção, tudo que é apenas nostalgia turva & futurismo estridente, em favor de um paroxismo ou captura da presença.

Incenso & cristal, adaga & espada, certo, túnicas, rum, charutos, velas, ervas como sonhos secos – o garoto virgem com olhar fixo num pote de tinta – vinho & haxixe, carne, iantras & rituais de prazer, o jardim de huris & sagüis – o feiticeiro escala essas serpentes & escadas até o momento totalmente saturado por sua própria cor, em que montanhas são montanhas & árvores são árvores, em que o corpo torna-se eternidade & o amado torna-se vastidão.

As táticas do anarquismo ontológico estão enraizadas nesta Arte secreta – os objetivos ao anarquismo ontológico aparecem no seu florescimento. O Caos enfeitiça seus inimigos & recompensa seus devotos... este estranho panfleto amarelado, pseudonímico & manchado de pó, revela tudo... passe-o adiante por um segundo de eternidade.

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CRIME


(capítulo 11)

JUSTIÇA NÃO PODE SER OBTIDA por nenhuma Lei – Uma ação que está de acordo com a natureza espontânea, uma ação justa, não pode ser definida por dogmas. Os crimes defendidos nestes panfletos não podem ser cometidos contra o "si mesmo" ou o "outro", mas apenas contra a mordaz cristalização de Idéias em estruturas de Tronos & Dominações venenosas.

É isso, não crimes contra a natureza ou contra a humanidade, mas contra a ordem legal. Mais cedo ou mais tarde, o descobrimento & a revelação de ser/natureza transformam uma pessoa num bandoleiro – como se ela visitasse outros mundos &, ao retornar, descobrisse que foi declarada traidora, herege, um ser exilado.

A Lei espera até que você tropece num modo de ser, uma alma diferente do padrão de "carne apropriada para consumo" aprovado pelo Sistema de Inspeção Federal -&, assim que você começa a agir de acordo com a natureza, a Lei o garroteia & o estrangula – portanto, não dê uma de mártir abençoado & liberal da classe média – aceite o fato de que você é um criminoso & esteja preparado para agir como tal.

Paradoxo: adotar o Caos não é escorregar para a entropia, mas emergir para uma energia semelhante à das estrelas, um espécime de graça instantânea – uma organização orgânica espontânea completamente diferente das pirâmides sociais putrefatas dos sultão, muftis, cádis & carrascos.

Depois do Caos, vem o Eros – o princípio da ordem implícito no vazio do Uno inqualificável. O amor é estrutura, sistema, o único código não contaminado pela escravidão & pelo sono drogado. Precisamos nos tornar vigaristas & persuasivos para proteger sua beleza espiritual num bisel de clandestinidade, num secreto jardim de espionagem.

Não apenas sobreviva, enquanto espera que a revolução de alguém ilumine as suas idéias, não se aliste no exército da anorexia ou bulimia – aja como se já fosse livre, calcule as probabilidades, pule fora, lembre-se das regras de duelo – Fume Maconha/Coma Galinha/Tome Chá. Todo homem tem sua própria vinha & sua figueira (Circle Seven Koran, Noble Drew Ali24) – carregue seu passaporte mouro com orgulho, não fique parado no meio do fogo cruzado, proteja-se – mas arrisque-se, dance antes que fique calcificado.

O modelo social natural para o anarquismo ontológico é uma gangue de crianças ou um bando de ladrões de banco. O dinheiro é uma mentira – esta aventura deve ser possível sem ele – o resultado das pilhagens & saques deve ser gasto antes que se torne pó novamente. Hoje é o Dia da Ressurreição – o dinheiro gasto com a beleza será alquimicamente transformado num elixir. Como o meu tio Melvin dizia, melancias roubadas são mais doces. O mundo já foi recriado segundo o desejo do coração – mas a civilização é dona de todas as locações & da maioria das armas. Nossos anjos ferozes exigem que invadamos a propriedade alheia, porque se manifestam apenas em solo proibido. O Ladrão de Estrada. A ioga da clandestinidade, o assalto relâmpago, o desfrute do tesouro.

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PORNOGRAFIA


(capítulo 10)


NA PÉRSIA EU VI que a poesia é feita para ser musicada & cantada – por uma razão simples – porque funciona.

Uma combinação perfeita de imagem & melodia coloca o público num hal (algo entre um estado de espírito emocional/estético & um transe de supraconsciência), explosões de choro, impulsos de dança – uma mensurável resposta física à arte. Para nós, a ligação entre poesia & corpo morreu junto com a época dos bardos – lemos sob influência de um gás anestesiante cartesiano.

No norte de Índia, mesmo a recitação não-musical provoca barulho & movimento, todo bom verso é aplaudido, "Bravo!" com elegantes movimentos de mãos, & rúpias são lançadas – enquanto nós ouvimos poesia como um daqueles cérebros de ficção científica em um vidro – na melhor das hipóteses, um sorriso amarelo ou uma careta, vestígios dos rituais símios – o resto do corpo longe, em algum outro planeta.

No Oriente, às vezes os poetas são presos – uma espécie de elogio, já que sugere que o autor fez algo tão real quanto um roubo, em estupro ou uma revolução. Aqui, os poetas podem publicar qualquer coisa que quiserem – o que em si mesmo é uma espécie de punição, uma prisão em paredes, sem eco, sem existência palpável – reino de sombras do mundo impresso, ou do pensamento abstrato – um mundo sem risco ou eros.

A poesia está morta novamente -& mesmo que a múmia do seu cadáver possua ainda algumas de suas propriedades medicinais, a auto-ressureição não é uma delas.

Se os legisladores se recusam a considerar poemas como crimes, então alguém precisa cometer os crimes que funcionem como poesia, ou textos que possuam a ressonância do terrorismo. Reconectar a poesia ao corpo a qualquer preço. Não crimes contra o corpo, mas contra Idéias (& Idéias-dentrodas-coisas) que sejam letais & asfixiantes. Não libertinagem estúpida, mas crimes exemplares, estéticos, crimes por amor.

Na Inglaterra, alguns livros pornográficos ainda estão banidos. A pornográfica produz um efeito físico mensurável em seus leitores. Como propaganda, ela às vezes muda vidas por revelar desejos secretos.

Nossa cultura gera a maior parte de sua pornografia motivada pelo ódio ao corpo – mas, como em certas obras orientais, a arte erótica em si mesma cria um veículo elevado para o aprimoramento do ser/consciência/glória. Um espécie de pornô tântrico ocidental poderia ajudar a galvanizar os cadáveres, fazê-los brilhar com uma pitada de glamour do crime.

Os Estados Unidos oferecem liberdade de expressão porque todas as palavras são consideradas igualmente insípidas. Apenas as imagens contam – os censores amam cenas de morte & mutilação, mas horrorizam-se diante de uma criança se masturbando – para eles, aparentemente, isso é uma invasão de seu fundamento existencial, sua identificação com o Império & seus gestos mais sutis.

Sem dúvida, nem mesmo o pornô mais poético faria o cadáver sem rosto reviver, dançar & cantar (como o pássaro do Caos chinês) – mas... imagine o roteiro de um filme de três minutos ambientados numa ilha mítica povoada por crianças fugitivas que moram nas ruínas de antigos castelos ou em cabanas-totens & ninhos construídos com detritos – uma mistura de animação, efeitos especiais, computação gráfica & vídeo – editado de forma compacta, como um comercial de fast-food...

... mas insólito & nu, penas & ossos, tendas abotoadas com cristais, cachorros negros, sangue de pombos – vislumbres de membros cor de âmbar enrolados em lençóis – rostos, cobertos por máscaras cheias de estrelas, beijando dobras macias de pele – piratas andróginos, faces abandonadas de colombinas dormindo em altas flores brancas – piadas sujas de se mijar de tanto rir, lagartos de estimação lambendo leite derramado – pessoas nuas dançando break – banheiras vitorianas com patos de borracha & pintos cor-de-rosa – Alice viajando no pó...

... punk reggae atonal para gamelão, sintetizadores, saxofones & baterias – boogies elétricos cantados por um etéreo coro de crianças – antológicas canções anarquistas, um misto de Hafiz20 & Pancho Villa, Li Po21 & Bakunin, kabir22 & Tzara – chame-o de "CHAOS – The Rock Video".

Não... provavelmente é só um sonho. Muito caro para produzir &, além disso, quem o assistiria? Não as crianças a quem ele gostaria de seduzir. A TV pirata é uma fantasia fútil; o rock, outra mera mercadoria – esqueça o gesamtkunstwerk23 malandro, então. Inunde um playground com obscenos folhetos inflamatórios – propaganda pornô, excêntricos manuscritos clandestinos para libertar o Desejo dos seus grilhões.
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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

MITOS DO CAOS


(CAPÍTULO 9)



Caos invisível (po-te-kitea)


Indomável, intransponível


Caos da escuridão absoluta Intocado & intocável -


-canto Maori


O Caos empoleira-se numa montanha de céu: um pássaro gigantesco, como uma asa-delta amarela ou uma bola de fogo vermelha, com seis pés & quatro asas – ele não tem rosto, mas dança & canta.


Ou o Caos é um cão negro de pêlos compridos, cego & surdo, sem as cinco vísceras.


Caos, o Abismo, é anterior a tudo, depois vem a Terra/Gaia, & então o Desejo/Eros. Desses trêssurgiram dois pares – Érebo & Noite ancestral, Éter & Luz diurna.



Nem Ser, nem Não-ser


Nem ar, nem terra, nem espaço:



o que estava escondido? onde? sob a proteção de quem? O que era a água, profunda, insondável? Nem morte, nem imortalidade, dia ou noite... mas o UNO soprado por si mesmo, sem vento. Nada mais. Escuridão envolvendo escuridão, água não-manifesta. O UNO, escondido pelo vazio, sentiu a geração do calor, tornou-se ser na forma de Desejo, primeira semente da Mente... O que estava por cima e o que, por baixo? Existiam semeadores, existiam poderes: energia embaixo, impulso em cima. Mas quem pode ter certeza? --Rig Veda Tiamat, o Oceano de Caos, expele lentamente de seu ventre Lama & Saliva, os Horizontes, o Céu & Sabedoria líquida. Esses rebentos crescem barulhentos & pretensiosos – ela pensa em destruí-los.


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Mas Marduk, o deus da guerra babilônico, levanta-se em rebelião contra a Velha Bruxa & seus Monstros do Caos, totens infernais – o Verme, a Ogre Fêmea, o Grande Leão, o Cachorro Louco, o Homem Escorpião, a Tempestade Trovejante – dragões vestindo suas glórias como deuses -& a própria Tiamat é uma serpente marinha gigante.


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Marduk a acusa de fazer os filhos se rebelarem contra os pais – ela ama Neblina & Nuvens, princípios da desordem. Marduk será o primeiro a reinar, a inventar o governo. Durante a batalha, ele trucida Tiamat & com o seu corpo encomenda o universo material. Inaugura o império da Babilônia -& então, com os miúdos & as tripas sangrentas do filho incestuoso de Tiamat, ele cria a raça humana para servir aos deuses para sempre & aos altos sacerdotes & reis sacramentados.


Zeus Pai & os deuses do Olimpo travam guerra contra Mãe Gaia & os Titãs, esses partidários do Caos, da velhas formas de caça & coleta, das longas andanças sem destino, da androginia & da licenciosidade das bestas.


Amon-Ra (Ser) senta-se sozinho no Oceano do Caos primordial da MADRE masturbando-se & criando todo os outros deuses – mas o Caos também se manifesta como o dragão Apophis a quem Ra deve destruir (juntamente com seu estado de glória, sua sombra & sua mágica) para que o faraó possa governar com segurança – um ritual de vitória recriado diariamente nos templos Imperiais para confundir os inimigos do Estado, da Ordem cósmica.


Caos é Hun Tun, Imperador do Centro. Um dia, o Mar do Sul, Imperador Shu, & o Mar do Norte, Imperador Hu (shu hu – relâmpago), visitaram Hun Tun, que sempre os recebeu bem. Desejando retribuir sua gentileza, eles disseram: "Todos os seres têm sete orifícios para ver, ouvir, comer, cagar etc. – mas o pobre velho Hun Tun não tem nenhuma! Vamos perfurar alguns nele!" E assim fizeram – um orifício por dia – até que, no sétimo dia, o Caos morreu.


Mas... o Caos também é um enorme ovo de galinha. Dentro dele, P’an-ku nasce & cresce por 18 mil anos – finalmente o ovo se abre, divide-se entre céu & terra, yin & yang. Então P’an-ku transforma-se na coluna que sustenta o universo – ou talvez se torna o universo (respiração >> vento, olhos >> sol & lua, sangue & fluídos >> rios & mares, cabelo & cílios >> estrelas & planetas, esperma >> pérolas, medula >> jade, suas pulgas >> seres humanos etc.).


Ou, ainda, transforma-se no homem/monstro, Imperador Amarelo. Ou transforma-se em Lao-tsé, profeta do Tao. Na verdade, o pobre velho Hun Tun é o próprio Tao.


"A música da natureza não existe além das coisas. As várias aberturas, gaitas, flautas, todos os seres vivos, juntos, formam a natureza. O ‘EU’ não pode produzir coisas & as coisas não podem produzir o ‘EU’, que existe por si mesmo. As coisas são o que são espontaneamente, não por causa de alguma outra coisa. Tudo é natural sem saber por
que o é. As 10 mil coisas tem 1o mil estados diferentes, todos em movimento como se existisse um Senhor Verdadeiro para movê-las – mas, se procuramos por evidências desse Senhor, não conseguimos encontrá-las." (Kuo Hsiang).


Cada consciência iluminada é um "imperador", cuja única forma de reinado é não fazer nada para não atrapalhar a espontaneidade da natureza, o Tao. O "sábio" não é o próprio Caos, mas um dos seus servidores leais – uma das pulgas de P’an-ku, um pedaço de carne do filho monstruoso de Tiamat. "Céu é Terra", diz Chuang-tsé, "nasceram no mesmo momento em que eu nasci, & eu & as 10 mil coisas formamos um ser único".


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O Anarquismo Ontológico tende a discordar apenas da total quietude do taoísmo. Em nosso mundo,
o Caos tem sido destituído por jovens deuses, moralistas, falocratas, padres-banqueiros, senhores adequados para escravos. Se a rebelião provar-se impossível, pelo menos algum tipo de guerra santa clandestina deve ser iniciada. Que ela siga as bandeiras da guerra do dragão negro anarquistas, Tiamat, Hun Tun. O Caos nunca morreu.

PIROTECNIA


(Capítulo 8)

INVENTADA PELOS CHINESES, mas nunca desenvolvida para a guerra – um bom exemplo de Terrorismo Poético – uma arma usada para disparar choques estéticos em vez de matar – os chineses odiavam a guerra & costumavam entrar em luto quando os exércitos se levantavam – a pólvora era mais útil para espantar demônios malignos, deleitar crianças, saturar o ar com uma bruma de bravura & com o cheiro de perigo.


Rojões de terceira categoria da província de Kwantung, foguetes, borboletas, M-80’s, girassóis, "Uma Floresta na Primavera" – clima de revolução – acenda seu cigarro com a espoleta chamuscada de um rojão negro – imagine o ar repleto de lêmures & íncubos, espíritos opressores, policiais fantasmas.


Chame um garoto com um bastão em brasa ou um fósforo aceso – apóstolo-xamã de enredos de verão de pólvora – estilhace a noite escura com pitadas & cascatas de estrelas infladas, arsênico & antimônio, sódio & calomelano, um corisco de magnésio & um silvo estridente de picrato de potassa.


Mande brasa (negro-de-fumo & salitre) a ferro & fogo – ataque o banco ou a horrível igreja de seu bairro com velas romanas & foguetes púrpura-dourados, de sopetão & anonimamente (talvez lançados da carroceria de uma picape em movimento).


Construa estruturas entrelaçadas com vigas de metal nos tetos dos edifícios de companhias de seguro ou escola – serpente cundalini ou dragão do Caos verde-bário enrolado contra um fundo de amarelo-sódio – Não Pise em Mim – ou monstros copulando & arremessando bolas de fogo na casa de velhos batistas.


Escultura de nuvens, escultura de fumaça & bandeiras = Arte do Ar. Obras de Terra. Fontes = Arteda Água. E fogos de artifício. Não se apresente patrocinando pelos Rockefeller & com a autorização da polícia para uma audiência de amantes da cultura. Evanescentes bombas-mentais incendiárias, mandalas assustadoras inflamando-se em esfumaçadas noites suburban alienígenas nuvens verdades da peste emocional detonadas por raios vajra17 azuis de orgônio18, fogos de artifícios a laser.


Cometas que explodem com odor de haxixe & carvão radioativo – demônios do pântano & fogos-fátuos assombrando os parques públicos – falso fogo-de-santelmo piscando sobre a arquitetura da burguesia – correntes de pequenos fogos de artifício caindo no chão da Assembléia Legislativa – salamandras-elementais19 atacando conhecidos reformados de moral.


Goma-laca flamejante, açúcar do leite, estrôncio, piche, água viscosa, fogo chinês – por alguns momentos o ar é puro ozônio – uma nuvem opala de pungente fumaça de dragão/fênix se espalhando. Por um instante, o Império cai, seus príncipes & governadores fogem para sua podridão satânica & nebulosa, penachos de enxofre dos elfos atiradores de chamas queimando suas bundas chamuscadas, enquanto eles recuam. O Assassino-criança, psique de fogo, mantém o poder por uma breve noite escaldante da estrela Sírio.
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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

OS ASSASSINOS


(capítulo 7)

ATRAVESSANDO O BRILHO DO
deserto & ganhando as montanhas policromadas, nuas & ocre, violeta pardo & terracota, no alto de um vale dissecado azul, os viajantes encontram um oásis artificial, um castelo fortificado em estilo sarraceno, guardando um jardim escondido.

Como convidados de Hassan-i Sabbah, o Velho da Montanha, eles sobem os degraus cortados na pedra que levam até o castelo. Aqui, o Dia da Ressurreição veio & passou – os do lado de dentro vivem fora do Tempo profano, que é mantido a distância com lanças & veneno.


Por trás de torres crenuladas & de longas janelas talhadas, estudiosos & fedains velam em estreitas celas monolíticas. Mapas do céu, astrolábios, destiladores & retortas, pilhas de livros abertos sob a luz da manhã – uma cimitarra descoberta.

Cada um dos que entram no reino do Imã-de-seu-próprio-ser transforma-se num sultão de revelação inversa, num monarca da anulação & da apostasia. Num aposento central, entrecortado pela luz & adornado com uma tapeçaria de arabescos, eles se recostam em almofadas & fumam longos narguilés de haxixe perfumado com ópio & âmbar.

Para eles, a hierarquia do ser compactou-se num ponto adimensional do real – as correntes da Lei foram quebradas – eles terminam seu jejum com vinho. Para eles, o exterior de todas as coisas é o interior delas, sua face verdadeira revela-se diretamente. Mas os portões do jardim estão camuflados com terrorismo, espelhos, rumores de assassinos, trompe l´oeil, lendas.

Ramãs, vários tipos de amoras, caquis, a melancolia erótica dos ciprestes, rosas de Shiraz de delicadas pétalas cor-de-rosa, jardineiras com aloé & benjoim de Meca, os caules rígidos das tulipas otomanas, tapetes abertos como jardins artificiais sobre gramados verdadeiros – um pavilhão inteiro decorado com um mosaico de caligramas – um salgueiro, um riacho repleto de agriões do brejo – uma fonte sob cristais geométricos – o escândalo metafísico que são as odaliscas banhando-se os criados negros brincando de esconde-esconde, molhados, por entre a folhagem – "água, verdura, belos rostos".

Ao cair da noite, Hassan-i Sabbah, como um lobo civilizado de turbante, debruça-se no parapeito sobre o jardim & contempla o céu, estudando pequenos asterismos de heresia no ar fresco & semrumo do deserto. É verdade que nesse mito alguns discípulos aspirantes podem receber o comando de arremessarem-se do alto das muralhas para a escuridão – mas também é verdade que alguns deles vão aprender a voar como feiticeiros.

O emblema de Alamut persiste em nossas mentes, uma mandala ou circulo mágico perdido na história, mas entalhado ou impresso na consciência. O Velho passa rapidamente, como um fantasma, por dentro das tendas dos reis & dos aposentos dos teólogos, atravessa todas as trancas & passa por todas as sentinelas que usam técnicas ninja/muçulmanas já esquecidas, deixando pesadelos, estiletes sobre os travesseiros, subornos poderosos.

O perfume de sua propaganda embebe-se nos sonhos criminosos do anarquismo ontológico, a heráldica de nossas obsessões exibe as lustrosas bandeiras negras dos Assassinos... todos pretendentes ao trono de um Egito Imaginário, um contínuo espaço/luz oculto consumido por liberdades ainda não imaginadas.

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terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

SABOTAGEM ARTÍSTICA


(capítulo 6)

A SABOTAGEM ARTÍSTICA ESFORÇA-SE
para ser perfeitamente exemplar mas ao mesmo tempo retém um elemento de opacidade — não propaganda, mas choque estético — pavorosamente direta ainda que sutilmente direcionada — ação-como-metáfora.

Sabotagem Artística é o lado escuro do Terrorismo Poético — criação-através-da-destruição — mas não pode servir a nenhum Partido, a nenhum niilismo, nem mesmo à propria arte. Da mesma forma que o banimento da ilusão faz com que a percepção se acentue, a demolição da praga estética adocica o ar do mundo do discurso, do Outro. A Sabotagem Artística serve apenas à consciência, à atenção, ao despertar.

A SA vai além da paranóia, além da desconstrução — a crítica definitiva — ataque físico em arte ofensiva — jihad estético. A mais leve mancha de trivial ego-icidade ou mesmo de gosto pessoal arruína sua pureza & vicia sua força. A SA não pode nunca buscar o poder — apenas liberá-lo.

Trabalhos artísticos individuais (mesmo os piores) são, em sua maioria, irrelevantes — a SA procura causar danos às instituições que usam a arte para diminuir a consciência & lucrar com a ilusão. Este ou aquele poeta ou pintor não pode ser condenado por falta de visão — mas as Idéias malignas podem ser atacadas através dos artefatos por elas geradas. A MUZAK15 é criada para hipnotizar & controlar — seu maquinário pode ser esmagado.

Queimar livros em público — por que caipiras & funcionários do governo devem ter o monopólio dessa arma? Romances sobre crianças possuídas por demônios; a lista de bestsellers do New York Times; tratados feministas sobre pornografia; livros escolares (especialmente Estudos Sociais, Moral e Cívica, Saúde); pilhas de New York Post, Village Voice & outros jornais de supermercado; compilações escolhidas de editores cristãos; alguns romances da Harlequin — uma atmosfera festiva, garrafas de vinho & baseados passados em círculo em uma clara noite de outono.

Jogar dinheiro fora na Bolsa de Valores foi Terrorismo Poético bastante razoável — mas destruir o dinheiro teria sido boa Arte Sabotagem. Atacar transmissões de TV & transmitir alguns poucos minutos pirateados de arte Caota incendiária seria um feito de TP — mas simplesmente explodir a torre de transmissão seria uma Sabotagem Artística perfeitamente adequeada. Se certas galerias & museus merecem um tijolo ocasional em suas janelas — não destruição, mas uma sacudidela na complacência — então o que dizer dos BANCOS? Galerias transformam a beleza em mercadoria, mas bancos transmutam a Imaginação em fezes e dívidas. Não ganharia o mundo um grau de beleza com cada banco que pudesse ser estremecido... ou derrubado? Mas como? A Arte Sabotagem deve provavelmente manter-se longe da política (é tão entediante) — mas não de bancos.

Não faça piquetes — vandalize. Não proteste — desfigure. Quando feiúra, concepções pobres & desperdícios estúpidos forem forçados a você, torne-se um Ludita16, jogue o sapato no mecanismo, retalie. Esmague os símbolos do Império em nome da nada além do anseio do coração pela virtude.
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PAGANISMO

(Capítulos 5 e 6)


Ontem tivemos que falhar na postagem do capítulo 5 do livro, pois a Escola do Teatro Fúria se pôs numa excasses de tempo implacável cá na chegada em Campo Grande. Pois então receba hoje, que pra nós está mais tranqüilo, dois cápítulos de uma só vez: o 5 de ontem e o 6 de hoje:

CONSTELAÇÕES PELAS QUAIS ORIENTAR A BOA ALMA. (capítulo 5)

"Se o muçulmano entendesse o Islã ele se tornaria um idólatra" - Mahmud Shabestari Eleguá, horrendo abridor de portais com um gancho em sua cabeça & búzios como olhos, negro charuto de santeria & um copo de rum — o mesmo que Ganesh, gorducho garoto dos Inícios, com cabeça de elefante, que cavalga um rato. O órgão que sente as atrofias numinosas com os sentidos. Aqueles que não podem sentir baraka não podem conhecer a carícia do mundo.

Hermes Poimandres ensinou a animação dos eidolons, a incorporação mágica de ícones por espíritos — mas aqueles que não podem realizar este rito em si mesmos & em todo o tecido palpável do ser material herdará apenas tristeza, lixo, decadência.

O corpo pagão torna-se uma Corte de Anjos que percebem todos este lugar — este mesmo arvoredo — como um paraíso ("Se há um paraíso, certamente é aqui!" — inscrição em um portão de um jardim Mughal9). Mas o anarquismo ontológico é por demais paleolítico para escatologias — as coisas são reais, a feitiçaria funciona, espíritos da mata unos com a Imaginação, morte como uma desagradável imprecisão — a trama das Metamorfoses de Ovídio —, um épico de mutabilidade. A mitologia pessoal.

O Paganismo ainda não inventou leis — apenas virtudes. Sem sacerdócio, sem teologia ou metafísica ou moral — apenas um xamanismo universal onde ninguém atinge a real humanidade sem uma visão. Comida dinheiro sexo sono sol areia & sensmilía— amor verdade paz liberdade & justiça. Beleza. Dionísio o garoto bêbado em uma pantera — rançoso suor adolescente — Pã homem-bode abre caminho através da terra sólida até sua cintura como se estivesse no mar, sua pele incrustada de musgo & líquen — Eros se multiplica em uma dúzia de jovens caipiras nus com pés embarrados & limo de açude em suas coxas.

Raven, o trapaceiro do potlatch10, às vezes um garoto, uma velha, pássaro que roubou a lua, agulhas de pinheiro flutuando em um açude, cabeça de totem Heckle/Jeckle, corvos coristas com olhos de prata dançando na pilha de lenha — o mesmo que Semar, o corcunda albino hermafrodita marionete de sombras, patrono da revolução Javanesa.

Yemanjá, estrela azulada, deusa marinha & padroeira dos bichas — o mesmo que Tara, aspecto cinza-azulado de Kali11, colar de crânios, dançando no rígido lingam12 de Shiva13, lambendo nuvens de monção com sua língua enormíssima — o mesmo que Loro Kidul, a deusa marinha verde-jaspe javanesa, que concede o poder de invulnerabilidade a sultões através de intercurso tântriko em torres & cavernas mágicas.

Sob um ponto de vista o anarquismo ontológico é extremamente vazio, desprovido de quaisquer posses & qualidades, pobre como o próprio CAOS — mas sob outro ponto de vista ele pulula com a mesma beleza barroca dos Templos da Foda de Katmandu ou de um livro de emblemas alquímicos — esparrama-se em seu divã comendo loukoum14 & acolhendo noções heréticas, uma mão dentro de suas calças frouxas. Os cascos de seus navios piratas são laqueados de negro, as velas triangulares são vermelhas, bandeiras negras exibindo uma ampulheta alada. Um imaginário Mar do Sul Chinês, próximo de uma costa coberta por uma floresta de palmeiras, apodrecidos templos dourados dedicados à deuses de bestiários desconhecidos, ilha após ilha, a birsa como úmida seda amarela na pele nua, navegando por estrelas panteístas, hierofania sobre hierofania, luz sobre luz contra a escuridão luminosa & caótica.
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domingo, 15 de fevereiro de 2009

CRIANÇAS SELVAGENS

(capítulo 4)


O INSONDÁVEL CAMINHO LUMINOSO da lua cheia — meia-noite em meio a Maio em algum Estado americano que começa com "I", tão bidimensional que dificilmente pode-se dizer que possui alguma geografia — os raios tão prementes & tangíveis que precisas traçar as nuances para pensar com palavras.

Está fora de questão escrever para as Crianças Selvagens. Elas pensam em imagens — para eles a prosa é um código ainda não completamente digerido & ossificado, assim como nunca é completamente confiável para nós.

Você pode escrever sobre elas, para que outros que perderam a cadeia prateada possam seguir adiante. Ou escrever por elas, fazendo da ESTÓRIA & do EMBLEMA um processo de sedução dentro de tuas próprias memórias paleolíticas, um bárbaro engodo para a liberdade (caos como o CAOS o entende).

Para esta espécie do outro mundo, ou "terceiro sexo", les enfants sauvages, a fantasia & a Imaginação ainda permanecem indiferenciadas. Um BRINCAR desenfreado: ao único & mesmo tempo a fonte de nossa Arte & de todos os mais raros erotismos da raça.

Abraçar a desordem como manancial de estilo & depósito voluptuoso, ponto fundamental de nossa civilização alienígena & oculta, nossa estética conspiratória, nossa espionagem lunática — esta é a ação (vamos encarar os fatos) tanto de um artista de qualquer tipo como de alguém de dez ou treze anos de idade.

Crianças cujos sentidos clarificados lhes revela uma brilhante feitiçaria de lindo prazer que reflete algo ferino & obsceno na natureza da própria realidade: anarquistas ontológicos naturais, anjos do caos — seus gestos & odores corporais espalham a seu redor uma floresta de presença, uma completa hiléia de presciência com cobras, armas ninja, tartarugas, xamanismo futurista, incrível bagunça, mijo, fantasmas, luz do sol, ejaculações, ovos & ninhos de aves — agressão exultante contra os adultos ranzinzas daqueles Planos Inferiores tão impotentes para englobar tanto epifanias destrutivas quanto criações sob a forma de extravagâncias, frágeis mas suficientemente afiados para fatiar o luar.

E ainda assim os habitantes destas dimensões inferiores de águas revoltas realmente acreditam que controlam os destinos das Crianças Selvagens — & aqui em baixo, tais crenças nocivas efetivamente esculpem a maior parte da substância do cotidiano.

Os únicos que realmente desejam compartilhar o destino daninho daqueles fugitivos selvagens ou guerrilhas menores ao invés de ditá-las, os únicos que podem entender que acalentar & desatrelar são o mesmo ato — estes são em sua maioria artistas, anarquistas, pervertidos, hereges, um bando à parte (tanto um do outro quanto do mundo), ou capazes de se encontrar apenas como devem crianças selvagens, cravando olhares atentos através de uma mesa de jantar enquanto os adultos tagarelam por detrás de suas máscaras.

Muito jovens para estarem em uma gangue de motoqueiros —fracassados, dançarinos de rua, poetas escassamente pubescentes de cidadezinhas planas e perdidas — um milhão de fagulhas caindo dos foguetes de Rimbaud & Mogli — esguios terroristas cujas bombas espalhafatosas são condensadas de amor polimórfico & dos preciosos quinhões de cultura popular — pistoleiros punks sonhando em furar suas orelhas, ciclistas animistas deslizando na penumbra de estanho através de ruas ponteadas por flores acidentais — nudistas ciganos fora de temporada, sorridentes e dissimulados ladrões de totems de poder, escassos trocados & facas com lâmina de pantera — nós os sentimos em todos os lugares — nós publicamos esta oferta para negociar a corrupção de nossa própria lux et gaudium por sua perfeita torpeza gentil.

Compreenda: nossa realização e nossa liberação dependem da deles — não porque nós arremedamos a Família, aqueles "avarentos de amor" que mantêm reféns para um futuro banal, nem o Estado que nos educa para afundar sob o horizonte de eventos de uma "utilidade" tediosa — Não — mas porque nós & eles, os selvagens, somos imagens uns dos outros, unidos & confinados por aquela cadeia prateada que define o âmbito da sensualidade, da transgressão & da visão. Dividimos os mesmos inimigos & nossos meios de fuga triunfal são também os mesmos: um jogo delirante e obssessivo, fortalecido pelo brilho espectral dos lobos & suas crianças.
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sábado, 14 de fevereiro de 2009

O AMOUR FOU

CAPÍTULOS 2 e 3

Como o capítulo 2- Terrorismo Poético já foi publicado, colocamos cá o linque direto, http://insurretosfuriososdesgovernados.blogspot.com/2009/01/exemplos-te-terrorismos-poticos-por.html
e na seqüência o que seria o capítulo de amanhã:
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O AMOUR FOU (capítulo 3)
NÃO É uma Democracia Social, não é um Parlamento de Dois. As atas de suas reuniões secretas lidam com significados enormíssimos mas muito precisos para a prosa. Não isso, não aquilo: seu Livro de Emblemas treme em tua mão.

Naturalmente ele caga em mestres-escola & na polícia, mas do mesmo modo zomba de liberacionistas & ideólogos: não é uma sala limpa e bem iluminada. Um charlatão topológico dispôs seus corredores & parques abandonados, seu intrincado mosaico de negro brilhante & vermelho maníaco e membranoso.

Cada um de nós tem a metade do mapa: como dois potentados renascentistas nós definimos uma nova cultura com nossa anatematizada mescla de corpos, mistura de líquidos — as costuras Imaginárias de nossa Cidade-Estado borra-se em nosso suor.

O anarquismo ontológico nunca voltou de sua primeira pescaria. Enquanto ninguém delatar para o FBI, o CAOS não está nem aí para o futuro da civilização. O Amour fou nasce apenas por acidente — seu objetivo primário é a ingestão da galáxia. Uma tramóia da transmutação. Sua única preocupação com a Família reside na possibilidade de incesto ("Crie os seus!" "Cada humano, um Faraó!") — Ó mais sincero dos leitores, minha semelhança, meu irmão/irmã! — & na masturbação de uma criança ele encontra escondida (como em um intrincado brinquedo oriental) a imagem da desagregação do Estado.

As palavras pertencem àqueles que as usam apenas até que outro alguém roube-as de volta. Os Surrealistas se desgraçaram por vender amour fou à máquina-fantasma da Abstração — em sua inconsciência, buscaram apenas o poder sobre os outros, & nisto seguiram de Sade (que queria "liberdade" apenas para brancos crescidos, para que pudessem eviscerar mulheres e crianças).


O Amour fou está saturado com sua própria estética, enche-se até as próprias fronteiras com as trajetórias dos próprios gestos, funciona com relógios angelicais, não é um destino próprio para comissários & lojistas. Seu ego evapora-se na mutabilidade do desejo, seu espírito comunal definha-se no egoísmo da obsessão.

O Amour fou envolve uma sexualidade incomum, da mesma forma que a feitiçaria exige uma consciência incomum. O mundo pós-Protestante anglo-saxão canaliza toda sua sexualidade suprimida na publicidade & divide-se em bandos que se chocam: histéricos pudicos versus clones promíscuos & antigos-ex-solteiros. AF não quer unir-se a nenhum dos exércitos, não toma partido na Guerra dos Sexos, entedia-se com oportunidades iguais de trabalho (na verdade ele recusa-se a trabalhar para viver), não reclama, não explica, nunca vota & nunca paga impostos.


AF gostaria de ver cada bastardo ("criança do amor") vir a termo e nascer — AF prospera em engenhos anti-entrópicos — AF adora ser molestado por crianças — AF é melhor que orações, melhor que sensimília3 — AF leva sua própria lua & suas palmeiras por onde quer que vá. AF admira o tropicalismo, a sabotagem, o break dance, Layla & Majnun4, os odores de pólvora e esperma.

O AF é sempre ilegal, quer esteja disfarçado como um casamento ou como uma tropa escoteira — sempre embriagado, seja no vinho de suas próprias secreções ou na fumaça de suas próprias virtudes polimórficas. Não é um tresloucamento dos sentidos, mas sim sua apoteose — não é o resultado da liberdade, mas sim sua pré-condição. Lux et voluptas
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sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

1- CAOS - OS PANFLETOS DO ANARQUISMO ONTOLÓGICO- Série Obras Completas




O Teatro Fúria a partir desta segunda 16 de fevereiro, estará em Campo Grande divulgando a Escola do Teatro Fúria http://insurretosfuriososdesgovernados.blogspot.com/2008/12/escola-do-teatro-fria-funciona-em.html
Por isso, pelo amor de não se interromper as atividades do nosso BlogZine, e pelo contrário, apesar do tempo excasso, continuarmos com a revolução desalienante de vento em popa, organizamos uma programação muito prática, motivante e eficiênte: A publicação do livro Caos - Os Panfletos do Anarquismo Ontológico de Hakin Bey que publicaremos em capítulos diários de hoje até o dia 24 de fevereiro, quando retornaremos a Hell City. Dali até acolá não teremos gravura nem edição perfeita . Colocaremos nos textos as gravuras e as edições perfeitas na volta da missão.
Euforia-Anarquia-Revolução-Fúria-Fúria-Fúria!!!

CAOS
(capítulo 1)



O CAOS NUNCA MORREU.


Bloco não-lapidado primordial, único monstro venerável, inerte e espontâneo, mais ultra-violeta do que qualquer mitologia (como as sombras frente à Babilônia), a original indiferencia da unidade-do-ser ainda se irradia serena como as flâmulas negras dos Assassinos, aleatória & perpetuamente intoxicada.

O Caos surgiu antes de todos os princípios de ordem & entropia, não é nem um deus nem um verme, seus desejos insensatos circundam & definem todas as coreografias possíveis, todos os éteres & flogistons: suas máscaras são cristalizações de seu próprio rosto inexistente, como nuvens.

Tudo na natureza é perfeitamente real, incluindo a consciência; não há absolutamente nada com o que se preocupar. Não apenas os grilhões da Lei foram quebrados; eles nunca existiram: demônios nunca vigiaram as estrelas, o Império nunca se iniciou, Eros nunca deixou a barba crescer.

Não, ouça, o que aconteceu foi o seguinte: eles mentiram para ti, venderam-te idéias de bem & mal, fizeram-te perder a confiança em teu próprio corpo & sentir vergonha por teus dons de profeta do caos, inventaram palavras de desprezo para teu amor molecular, te hipnotizaram com distrações, te entediaram com a civilização & todas suas emoções usurárias.

Não há transformação, nem revolução, nem luta, nem caminho; já és o monarca de tua própria pele — tua liberdade inviolável espera para ser completada apenas pelo amor de outros monarcas: uma política de sonho, urgente como o azul do céu.

Para desfazer todos os direitos & hesitações ilusórios da história, é necessária a economia de uma lendária Idade da Pedra: xamãs ao invés de padres, bardos ao invés de senhores, caçadores ao invés de policiais, coletores dotados de preguiça paleolítica, gentis como sangue, saindo nus por aí ou pintados como pássaros, equilibrados na onda da presença explícita, o agora-e-sempre atemporal.

Agentes do caos deitam olhares flamejantes sobre qualquer coisa ou pessoa capaz de prestar testemunho à sua condição, à sua febre de lux et voluptas. Estou desperto apenas naquilo que amo & desejo ao ponto do terror: todo o resto é apenas mobília coberta, anestesia cotidiana, merda na cabeça, tédio subreptiliano de regimes totalitários, censura banal & dor inútil.

Avatares do caos agem como espiões, sabotadores, criminosos do amour fou, nem generosos nem egoístas, acessíveis como crianças, educados como bárbaros, esfolados por obsessões,
desempregados, sensualmente tresloucados, lobos angelicais, espelhos para contemplação, olhos como flores, piratas de todos os signos & sentidos.

Cá estamos nos arrastando pelas rachaduras nos muros da igreja estado escola & fábrica, todos os monólitos paranóides. Cortados da tribo por uma nostalgia furiosa, escavamos em busca de palavras perdidas, bombas imaginárias.

O último feito possível é aquele que define a percepção em si, um invisível cordão dourado que nos conecta: dança ilegal nos corredores do tribunal. Se eu te beijasse aqui eles chamariam isso de ato de terrorismo: vamos então levar nossas pistolas para a cama & acordar a cidade à meia-noite, como bandidos bêbados celebrando
com uma fuzilaria a mensagem do gosto do caos.

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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

4 - A HISTÓRIA SECRETA DA REDE GLOBO - SÉRIE JORNALISMO MERCENÁRIO


A HISTÓRIA SECRETA DA REDE GLOBO
“BEYOND CITIZEN KANE”


Documentário de Simon Hartog da emissora pública britânica Channel Four – 1993.
Nunca passou em nenhuma televisão brasileira, não é alugado na Block buster nem está a venda nas lojas Americanas.
Será que uma das maiores empresas de comunicação do mundo tem medo de informação?
Assiste e Divulga
(se desejar)


A HISTÓRIA SECRETA DA REDE GLOBO PARTE 1


A HISTÓRIA SECRETA DA REDE GLOBO PARTE 2


A HISTÓRIA SECRETA DA REDE GLOBO PARTE 3


A HISTÓRIA SECRETA DA REDE GLOBO PARTE 4


A HISTÓRIA SECRETA DA REDE GLOBO PARTE 5

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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

2 - NOTAS PARA UMA DEFINIÇÃO DE CINEMA REVOLUCIONÁRIO- ALFREDO RUBINATO- Série Cinema Anarquista

A Greve, de Sergei Eisenstein

Notas para uma Definição de Cinema Revolucionário
por Alfredo Rubinato


Desde o advento do cinema soviético, com a vitória da revolução socialista, as possibilidades de um cinema de expressão revolucionária começaram a ser seriamente discutidas. Através, sobretudo, dos cineastas Sergei Eisenstein e Dziga Vertov, tornou-se palpável a concepção de um cinema não apenas revolucionário em termos de conteúdo, mas revolucionário também em seu aspecto formal, uma arte revolucionária na amplitude máxima de seus meios de formulação. A mesma atitude pode ser encontrada nas vanguardas literárias soviéticas, em poetas como Maiakovsky, Klebhnikov ou Krutchonik, bem como nas artes plásticas, com Malevitch, Lissitzky, Rodchenko, Tatlin e outros, e seria a característica determinante da cultura soviética nos anos 20, antes do advento do stalinismo e da ditadura do realismo socialista nas artes com Zdanov.
Eisenstein preconizou uma montagem dialética, que se inspirou em fontes tão diversas como o marxismo, o teatro Nõ japonês e os ideogramas. A concepção dialética de montagem advoga o princípio da justaposição de dois planos que criam um novo significado, que não é expresso em termos visuais, mas sim em termos conceituais na mente do espectador. Pode-se citar, como exemplo notável desta concepção, a memorável seqüência de A Greve (Stachka — 1924), onde são justapostos planos consecutivos que mostram cenas de um matadouro de bovinos e a repressão da polícia tzarista aos grevistas. O significado almejado não é exibido plasticamente na tela, mas de obtido de modo abstrato no entendimento. É importante verificar que não há, pois, um objetivo meramente didático, pois o significado não é apresentado como um realidade acabada, pronta para ser assimilada, mas sim como uma proposta que deve ser discutida pelo espectador. Trata-se de um cinema que desencadeia no público a formação da consciência revolucionária, num processo que exige uma participação ativa daquele que o contempla, que é chamado a refletir sobre o conteúdo expresso na tela. Forma-se portanto a seguinte equação: conteúdo revolucionário + forma revolucionária = ARTE REVOLUCIONÁRIA.


Para Vertov, o caráter revolucionário do cinema se resolve na montagem. O cinema de Vertov proclama o primado da câmara sobre o olho humano. A câmara é o instrumento que organiza a realidade numa perspectiva coerente. É um cinema que recusa toda forma de encenação, se afirmando como uma interpretação revolucionária da realidade. Nesse sentido, considera a ficcionalização da realidade como uma forma de ilusão, de mistificação. O cinema se transforma num instrumento dialético não apenas de interpretação, mas de transformação revolucionária da humanidade. É o olho mecânico — KINOGLAZ — que organiza a realidade, que força o espectador, antes passivo, a converter-se em sujeito histórico de sua própria libertação.

O cinema revolucionário é aquele que, portanto, responde de maneira transformadora e libertária às questões do contexto histórico que enfrenta, não apenas na perspectiva das idéias, mas também da estética, da forma. É, em sua essência, o mesmo trabalho que um Brecht, um Heiner Müller, irão desenvolver no teatro, estimulando a sensibilidade e a reflexão crítica do público. É importante enfatizar que a arte revolucionária, quando destituída de uma estética revolucionária que acompanhe suas idéias, logo degenera em arte didática, em arte falsamente "popular", e o que é mais grave, em objeto de manipulação política de governos autoritários, como no célebre caso do realismo socialista stalinista. Sem a vanguarda formal, pois, a arte revolucionária perde o seu conteúdo transformador, pois é manipulada de maneira a se converter em instrumento de mera doutrinação; e, sem as idéias revolucionárias, a vanguarda formal perde sua capacidade de transformação, perdendo-se em estetizações estéreis, em solilóquios na torre de marfim.


Se observarmos os grandes artífices do cinema revolucionário pós-soviético — Godard, Gorin, Glauber, Buñuel, Chris Marker, Solanas, Pasolini, Sanjinez e outros mais — verificaremos que são artistas que utilizaram um suporte formal sumamente inovador e transgressivo para veicular suas idéias revolucionárias, inclusive, em muitos casos, rejeitando as soluções estéticas preconizadas pelos mestres soviéticos. Glauber Rocha, que começou, de um certo modo, pagando tributo a Eisenstein e ao neo-realismo italiano em seus primeiros esforços, irá, no decorrer de sua carreira, se afastar cada vez mais dos modelos europeus em direção a uma estética totalmente original, fusão de alegoria barroca, pajelança e cristianismo libertário, num processo que acompanha o seu desligamento progressivo das categorias racionalistas do marxismo em direção a um conceito de revolução messiânica, que se processa num êxtase místico revolucionário. Godard, por seu turno, radicaliza a perspectiva de um cinema filosófico e alicerçado em conceitos, expressando, todavia, tais reflexões numa narração cada vez mais descontínua e caótica, que rompe com a linearidade ideológica colonizante do cinema convencional. A desconstrução narrativa impede que o espectador aceite passivamente o que está sendo apresentado, forçando-o a refletir sobre o que vê e ouve. A idéia é justamente provocar desconforto no público, perturbando-o em suas convicções mais firmes, instalando o conflito e desmantelando o consenso.

Pode-se dizer que uma estética revolucionária tem a função de despertar o espectador para o conteúdo das idéias que estão sendo discutidas no filme. É como se fosse um rastilho, um detonador de consciências, que implode a muralha de preconceitos que o público já traz dentro de si. Não é difícil verificar como a narrativa linear é um instrumento de doutrinação ideológica, conduzindo o espectador, através do encadeamento linear de idéias, a uma determinada conclusão previamente determinada e controlada pelos autores da obra. Um cineasta revolucionário, ao contrário, não consegue, e nem tampouco deseja, controlar a interpretação de sua obra, pois apresenta suas idéias de um modo não-linear, não-didático, forçando o espectador ao debate, evitando de maneira resoluta o adestramento ideológico.