segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

3 - ENTREVISTA COM JOÃO DAS NEVES- SÉRIE MANIFESTO TEATRAL NOS NOVOS NOBRES


Entrevista com João das Neves

O mundo como dramaturgo, o mundo como pedagogo

Entrevista realizada por Rodrigo Antonio
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Como a necessidade de união em relação ao combate à ditadura forjou uma geração de artistas polivalentes, vide a experiência do CPC – UNE e do grupo Opinião?

O trabalho do CPC abrangia todas as artes, com todos os modos de criação artística, o que acabou nos dando uma grande intimidade com todas elas. E acabou criando artistas que de alguma maneira se deslocavam por si sós do cinema para o teatro, do teatro para a literatura, para a música. Foi rica nesse sentido; além de ser rica também no sentido de que eram artistas que estavam muito envolvidos com a realidade brasileira, envolvidos com todas as formas de fazer artístico e cultural na sociedade brasileira. A nossa proposta de fazer uma arte que fosse acessível para todos, uma arte engajada que lidasse com os problemas da sociedade brasileira.da forma mais abrangente possível. Então independentemente de erros e acertos, foram experiências – para quem participou delas – extremamente ricas, e nos deu, sim, provavelmente essa mobilidade, essa capacidade de mudar de uma coisa para outra., essa intimidade com várias formas de fazer artístico
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Qual era o núcleo duro de artistas dentro do CPC que acabou gerando o grupo Opinião?

Na parte de Teatro era o Vianninha, o Ferreira Gullar, o Armando Costa, a Tereza, Paulo Pontes e eu. Aliás, o Paulo Pontes nem era do Rio de Janeiro, ele chegou no Rio, exatamente, no dia do golpe. Na época eu fiquei encarregado de fazer contato com ele, por que ele estava chegando. Eu fiz contato com ele. Nós integramos, de alguma maneira, ele no Rio. Depois de alguns meses, quando nós fundamos, ele veio integrar o grupo Opinião. O Paulinho era da Paraíba, mas ele acabou ficando prisioneiro, daí em diante. Esse não era o núcleo duro do CPC, era o núcleo duro do pessoal de teatro do CPC, que veio depois a formar o Opinião.
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Como foi essa passagem?

Nós continuávamos as nos reunir, e procurávamos buscar uma saída, no quadro do golpe de 1964, que aquelas idéias que nasceram com o CPC não morressem. Ficamos alguns meses pensando em como proceder, até que decidimos continuar as nossas atividades através de um grupo de teatro. Essas pessoas – todas elas – que formaram o grupo Opinião eram do Partido Comunista, então tínhamos reuniões de células com alguma regularidade e, ali, refletíamos sobre o que fazer. Conseguimos montar essa companhia, que – inicialmente – o grupo Opiniçao não começo se chmando grupo Opinião, nós conversamos com o pessoal do Arena, aqui de São Paulo, e nossos primeiros espetáculos saíram com o nome do Teatro de Arena. Eles tinham uma resistência, que era uma resistência que era legalizada, continuada, embora houvesse toda uma série de percalços que a revolução causou a eles.
O Arena, portanto, nos emprestou o seu nome. O nosso primeiro espetáculo que foi o Show Opinião saiu com o nome do Teatro de Arena, que nós usamos até o terceiro espetáculo. Liberdade, Liberdade foi o nosso segundo espetáculo. E nós só assumimos o nome Opinião com o nosso terceiro trabalho que foi “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Muitos estudiosos citam o Show Opinião como se fosse uma produção do Teatro de Arena, quando na verdade era uma produção nossa, do núcleo que formava o que seria o grupo Opinião.
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O Show Opinião aglutinou vários artistas: músicos, escritores...

Sim, foi o primeiro espetáculo – após o golpe de 64 – que falava do golpe de 64. E esse espetáculo acabou trazendo artistas não só do Rio de janeiro, mas de artistas que passaram pelo Rio. As discussões políticas, os rumos a se tomar em relação ao golpe aconteciam no Opinião, que se tranformou num ponto de encontro entre todos os artistas e intelectuais da época para discutir o que estava acontecendo, e todos os movimentos – contra a censura, por exemplo – acabaram saindo dali.
Isso teve um papel aglutinador também em relação à linguagem, porque se reuniam pessoas de todas as áreas: da música, da literatura, do teatro, do jornalismo. As reuniões subversivas e de discussão artística ocorriam no Opinião.

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Embora tenha havido esta aglutinação, a ditadura mascarou as matizes que a própria esquerda possuía. A esquerda teve que se unificar para atender a um problema comum, que era a ditadura. Como o senhor avalia esse processo?

Toda situação gera perdas e ganhos, nesse caso houve muito mais perdas do que ganhos. Se é possível dizer que houve algum ganho de uma situação como essa, é pelo fato de que esta situação nos obrigou a nos inter-relacionarmos mais, apesar das dificuldades de relacionamento. Pode-se pensar que a relação no Opinião era tranqüila, não era. Seguidas vezes tivemos problemas muito graves. As pessoas eram perseguidas fora dali, constrangendo as reuniões. Mas há ali um ganho de haver a necessidade de as pessoas se encontrarem ali, e de discutirem maneiras de sairmos daquela situação que vivíamos.
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Há algum episódio que seja ilustrativo disto?

O espetáculo Liberdade, Liberdade, por exemplo, foi escrito pelo Millor Fernandes e pelo Flávio Rangel. Era dirigido pelo Rangel, e foi um espetáculo com muito público. Os atores eram Paulo Autran, Tereza Raquel, a Nara Leão, que fazia parte do grupo de música, e o Vianninha.
Certo dia tivemos uma reserva estranha na bilheteria para 20 pessoas [nosso teatro tinha trezentos e poucos lugares]. Isso era um fato inusitado, geralmente iam duas ou três pessoas juntas.

Nós estávamos recebendo ameaças por telefone já há algum tempo. Desconfiados, localizamos a pessoa que fez a reserva e descobrimos que fazia parte de um daqueles grupos de anticomunistas. Imediatamente telefonamos para todos os jornalistas, e avisamos: venha hoje aqui, porque alguma coisa estranha pode ocorrer. Paralelamente, nós fomos até a polícia e fizemos uma denúncia de que poderia haver algum atentado. E dissemos: vocês venham, porque estamos como teatro lotado e se acontecer alguma coisa nós vamos responsabilizar vocês.

E eles foram, efetivamente. E ao começar o espetáculo percebemos que havia caras com volumes estranhos. Não havia revista, mas eles tinham comportamento estanho, iam ao banheiro durante o espetáculo.

De repente uma pessoa da platéia começou a discutir com o Paulo Autran, daqui a pouco mais dois ou três também, até que o Paulo – muito calmo, sempre muito sereno – disse: “acendam as luzes todas, botem luz na platéia, porque aquele senhor e aquele querem falar conosco. Vamos ouvir o que eles têm a dizer. O espetáculo é sobre a Liberdade, vamos deixa-los falar.” [risos]

E como eles não tinham o que dizer, foram se levantando um a um, e foram – 20 pessoas – embora, quietinhas, e o espetáculo continuou.

Isso nos dava uma grande experiência para lidar com situações como essa. No dia do anúncio do AI-5, estávamos montando um espetáculo do Geraldo Vandré – que se chamava Caminhando – e que eu dirigia. E de noite, após os espetáculo botaram uma bomba em nossa bilheteria. Eu morava no bairro Peixoto, próximo ao local, e ouvi a bomba. Fomos ao teatro,.a bilheteria estava inteiramente destruída. Apesar de a bilheteria ser em cima, e o teatro em baixo [e a área de espetáculos não ter sofrido danos], eles interditaram o teatro. Ficamos sem poder trabalhar por vários meses, tendo salários a pagar, aluguel. Jamais foi feita uma investigação correta.

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Esses são alguns dos percalços concretos que a ditadura criou...
Muito concretos [risos]
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Eu gostaria que o senhor falasse de questões mais simbólicas e teóricas, em relação ao fazer teatral. O Sérgio de Carvalho, por exemplo, costuma dizer que a ditadura interrompeu um processo de amadurecimento do Teatro Épico. Havia uma valorização do herói operário, personificada por Eles não usam blacktie, e pesquisas estéticas e políticas mais sofisticadas que estavam em curso foram abortadas pela ditadura. O Teatro Épico que se tem hoje é tributário do teatro engajado dos anos 1960, mas com perdas enormes. O que a ditadura interrompeu desse processo?

Basicamente, ela interrompeu um processo de troca entre as pessoas, sobretudo entre as gerações. Quem estava fazendo teatro, criando, não necessariamente dentro de uma linha do Teatro Épico, aqueles jovens em formação dentro do próprio processo teatral – como Vianninha o próprio Guarnieri – continuaram fazendo o seu trabalho.
Mas a geração que vinha depois, não teve a possibilidade de se formar.

Durante alguns anos, tivemos uma geração que continuou fazendo o seu trabalho, enfocando os problemas da sociedade brasileira, tendo que driblar a censura, e tendo que se expressar por metáforas, que nem sempre eram suficientemente claras. E tudo isso sem poder se relacionar com a geração que estava vindo e queria se expressar e não podia. Até o fechamento total, que se deu em 68, você conseguira trabalhar com certa regularidade, mas o que não havia era a possibilidade de se passar esse aprendizado do que esse estava fazendo. Houve uma geração que acabou não se formando.
Em relação ao Teatro Épico, o nazismo, na Alemanha, também fez esse corte. Mas as pessoas que estavam trabalhando, foram para o exílio e continuaram a se desenvolver. As teorias, a espinha dorsal do Teatro Épico de Brecht, não foi feita na Alemanha, mas sim fora dela., até que ele voltou para lá, mas com toda uma teoria formulada.

Quando há um processo de fechamento, quem está num processo, continua nesse processo de criação. Mas que estava fora, fica impedido de penetrar. A tendência é de se formarem núcleos.

Aqui, teve o núcleo do Arena, do Opinião, teve o Oficina, que conseguiu continuar a trabalhar de alguma maneira ... mas um processo de troca mais fértil acabou não acontecendo. Existia nos núcleos, mas não fora deles. Você era impedido de se reunir, de refletir, de fazer debates. Você era obrigado a restringir as discussões e a sua formação ao seu núcleo e frequentemente esses núcleos eram desbaratados. Você voltava a uma reflexão quase individual.

Nos CPC’s, por exemplo, tínhamos um grande número de artistas. Em cada faculdade havia uma CPC, por todo o Brasil, e cada local desses era um ponto para reflexão, criação, discussão. Essas discussões levavam ao pensamento sobre a realidade brasileira e aos caminhos que esses grupos estavam percorrendo. E descaminhos também: costuma-se dizer que os CPC era uma coisa unívoca, o que não era a reaidade. O CPC era um caldeirão de pensamentos díspares. Tanto assim que, após a revolução, começaram a surgir pessoas e – muito mais tarde – movimentos que tinham como base o CPC. O movimento da Tropicália, por exemplo, pertencia, na base, ao CPC de Salvador. Eles saíram de um centro de reflexão que se dava na universidade. Por mais que eles se colocam-se com idéias contrárias a alguns grupos, eram idéias que estavam postas lá.

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A geração seguinte sofreu de grande despolitização. Em relação ao teatro, nos anos 2000 há uma repolitização da cena e um fortalecimento do teatro de grupo, ao menos em São Paulo. Como o senhor avalia esse fenômeno e como se dá a sua inserção nesse período, ao trabalhar nos rincões do país? Qual a sua relação com essa noção de centro e periferia da produção cultural?

Meu caso não é único, portanto penso ao generalizar a minha experiência particular. Com as experiências dos CPC’s, em todo o Brasil, e o acompanhamento da diretoria da UNE em épocas de eleições, que fazíamos (nós do Rio de Janeiro), ao viajar por todo o país, reproduzíamos – num nível artístico – o que ocorreu com o Marechal Rondon e com a Coluna Prestes.
Vivíamos, pelo Brasil inteiro, escutando, refletindo e conhecendo os diversos movimentos artísticos do país, ao menos dentro da classe média estudantil e – através disso – tomávamos contato com os movimentos populares de criação de arteseanato, de teatro, etc.

Foi através dessas viagens que eu conheci melhor a cerâmica do nordeste, e sobretudo, travei contato com os artistas. Comecei a ver quem fazia cordel no nordeste, quem fazia cerâmica no Vale do Jequitinhonha. Isso ia do amazonas ao Rio Grande do Sul. Isso enriqueceu muito a minha visão de mundo, minha visão sobre o significado da arte, e sobre aquilo que ela significa concretamente no dia a dia das pessoas.

Muitos anos mais tarde, quando dissolvemos totalmente o grupo Opinião, me remeti àquela experiência de modo a me recolocar frente ao Brasil. A partir daí vivi no Acre, na Bahia, em Minas, e em cada lugar, procurei buscar essas fontes.

Acredito que isso aconteceu com muitas pessoas e com muitos grupos que passaram a ter a efetiva necessidade de conhecer esse país mais a fundo. Hoje, nas experiências mais interessantes que podemos encontrar no teatro em São Paulo, como o teatro da Vertigem, por exemplo, os grupos saem pelo Brasil para pesquisar. Esse último trabalho que o Vertigem realizou no Tietê, eles foram até Brasiléia no Acre. Viajaram o Brasil todo para colher material. Isso de alguma maneira vem daí também.

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Essa sua inquietação pessoal foi uma forma de superar a despolitização pós-ditadura? Esse entranhamento no Brasil foi a sua forma de engajamento?

Objetivamente, nós nunca somos uma coisa só. A minha ida para o teatro, para a arte, teve muito a ver com a minha formação de infância. Eu fui um menino criado no meio de obras. Meu pai sempre foi uma pessoa que quis ascender na vida. Ele era farmacêutico e nossa casa sempre teve obras. Era uma casa que se transformou numa farmácia que ficava na frente, depois andou a fazer mais um andarzinho. Na década de 1940, eu tive muito contato com os operários desta obra, que eram quase todos nordestinos. A minha ligação com a cultura do nordeste veio daí. Na minha casa tinha bumba meu boi, na época da cumeeira tinha festas do nordeste, havia operários que faziam literatura de cordel, tocadores de viola. Eles dormiam – como acontece ainda hoje – na obra. Eu me encantei com tudo aquilo. Eu sou, na verdade, artista por causa deles [risos].

Então, a todo esse movimento anterior do CPC, as coisas vão se somando por acaso. E resultaram num modo de disposição em relação ao mundo que é o que eu tenho hoje. Eu sou caudatário em relação a tudo isso. Não só do CPC. O próprio fato de eu gostar das propostas do CPC tem muito a ver com essa formação. E isso foi sempre se acentuando: eu gosto de andar pelo Brasil, cutucando esses rincões distantes, e absorvendo essa cultura, enriquecendo com ela, ganhando muito com ela, aprendendo pra burro, com as pessoas que a gente encontra. Culturalmente.

E isso é importante, porque muitas vezes você encontra pessoas, em termos de uma educação erudita, analfabetas. Mas que são pessoas que têm uma cultura extremamente rica, porque são pessoas que dominam todo o seu universo. O cara que faz a folia de reis sabe fazer a sua violinha, a sua rabeca, as suas caixas; ele conhece todas as plantas que estão em volta dele; é um ser humano que tem pleno domínio das coordenadas do seu universo: sabe cuidar de mordida de cobra, de escorpião. Coisa que eu não sei, das quais sou totalmente ignorante.

Eis um episódio muito bonito, muito curioso: há alguns anos – eu e minha mulher, que é cantora – entrevistamos um capitão de congado, chamado Zé Serverino. Ele era carreiro, trabalhava numa fazenda. E um dia o fazendeiro o chamou e apresentou a ele um moço, e pediu que respondesse àquele moço todas as perguntas que ele fizesse. E o rapaz passou a tarde toda com ele perguntando “essa planta serve para quê? Aquela árvore o que é”. De modo que aquele professor da Universidade de Campinas passou a tarde toda estudando com o ‘seu Zé Severino’.

O mais curioso é que ele me relatou esse dia dizendo: “Foi uma tarde muita boa: passei a tarde toda sem trabalhar”. Ora, veja, ele deu aula o dia todo, e acha que não trabalhou.

Ora. Isso é muito bonito, mostra o quanto não devemos ser arrogantes, ao pensar que sabemos das coisas. Aquele homem, em seu registro oral, nos dá um perfeito testemunho de seu mundo.


fonte revista Camarim nº42

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